Camilo José Cela e um suposto vocabulário do baralhete

A publicaçom polo escritor Camilo José Cela de um vocabulário inédito atribuído à gíria gremial dos afiadores ambulantes galegos, denominada baralhete, suscitou o interesse polo seu estudo com o fim de determinar a procedência das palavras nele incluídas. A análise pormenorizada da origem das vozes que o componhem revelou que tal vocabulário nom pode pertencer à citada gíria.

Sob o título de “Más sobre el barallete”, o escritor Camilo José Cela publicou un artigo no jornal ABC de Madrid de 21 de março de 1999 sobre a gíria dos afiadores galegos, posteriormente reproduzido no livro póstumo Retorno a Iria Flavia. Obra dispersa y olvidada, 1 940-2001 , em ediçom de Olivia Rodríguez González, quem selecionou os artigos, ensaios, discursos e cartas que componhem este livro (Cela, 2006) . No citado artigo o autor informa de umha nova compilaçom de vozes do baralhete, a gíria dos afiadores, a qual consta de 25 palavras que reproduz com o seu significado e que afirma ter obtido de “doña Dorinda Barros, la madre de los Barreiros” (Cela, 2006: 159) . Sem mais dados sobre a identidade da informante, supugemos e verificamos pessoalmente que se refere a María Dorinda Ramos Ramos, viúva do empresário galego de automoçomEduardo Barreiros, e Presidenta de Honra da Fundaçom Eduardo Barreiros.

Antes da reproduçom do novo vocabulário o autor do artigo introduze-o informando de que o baralhete é a gíria falada polos afiadores de Nogueira de Ramuim, e de que a primeira notícia da mesma foi publicada em 1953 por José Ramón e Fernández Oxea. Na realidade é a gíria dos afiadores e também doutros ambulantes galegos das comarcas de Ourense, Maceda, Caldelas e Trives. Igualmente, comenta um episódio biográfico, já reproduzido anteriormente num dos seus livros, em que refere o encontro que numha ocasiom tivo cum afiador galego em Castela e a zanga que a este lhe provocou o facto de se dirigir a ele em baralhete, justificada polo zelo com que os membros deste grémio protegem a sua gíria do conhecimento dos alheios.

A seguir oferece o vocabulário, apresentando-o como inédito, já que as suas palavras nom estám recolhidas na compilaçom feita por Ramón e Fernández Oxea (1982 [1968] ) . Com efeito, nom estám recolhidas por este autor e também nom por posteriores compiladores desta gíria como Álvarez Álvarez (1965) , Fidalgo Santamariña (1988, 1992) ou o autor deste trabalho (Rodrigues Gomes, 2008) , nem por anteriores, como o escritor galego Castelao (Hermida Gulías e Suárez Vázquez, 2008) , e também nom as encontramos no vocabulário que o escritor Fernández Ferreiro (1992; 1ª ed. 1980) inclui na sua novela A saga dun afiador.

Como lingüista e estudioso dos criptoletos gremiais e, nomeadamente, do baralhete, lim e estudei com muito interesse o vocabulário publicado por Camilo José Cela, embora afinal com certa deceçom, visto que, com efeito, as tais palavras nunca foram recolhidas porque nom pertencem à citada gíria, mas ao galego comum. A seguir apresento este vocabulário com a definiçom oferecida por Cela e a explicaçom etimológica que para cada um dos termos encontrei:

achiscado, definido como “esperto, inteligente, engenhoso”. Existe em galego o termo achiscar “vislumbrar”, e, portanto, achiscado “vislumbrado” (Otero, 2003 [1977] ).

aganduxar, definido como “assear”. Em galego é umha variante dialetal de gandujar “alinhavar”.

arriscar, definido como “arranjar, enfeitar”. Nalguns lugares da Galiza este verbo utiliza-se com o significado de ataviar-se ou assear-se com esmero (Valladares, 2003 [1884] ; García, 1985) ou formar riscos e adornos no peitilho da camisa (Rodríguez González, 1958).

ativiñar, definido como “arriscar”. Nom encontramos um étimo certo para este vocábulo, embora tenha umha grande semelhança fónica com adivinhar.

axofrado,-a, nom aparece definida já que informa que a sua comunicante nom se lembra do significado. Em galego é o participio de axofrar, variante de enxofrar.

calanfranón,-na, definido como “desajeitado, desastrado”. Está claramente relacionado com o termo galego dialetal calinfórnio de idêntico significado (RivasQuintas, 2003).

chinostra, definido como “sentido comum”. Este é um termo dialetal castelhano que tem o significado de “cabeça” (León, 1992).

chouriciño,-a, definido como “feiote e desleixado”. É o diminutivo do galego chouriço utilizado com umha modificaçom semántica baseada na comparaçom de umha pessoa de pouco atrativo físico com um chouriço, considerando este como objeto carente de valor estético.

dunicela, definido como “pessoa curiosa e intrometida”. Este é um dos nomes da doninha, e o significado que se lhe dá é umha extensom semántica baseada em características atribuídas a este animal.

enfunadiño,-a, definido como “de bom aspeto, de porte vistoso”. O termo enfunado aparece registado nalguns dicionários galegos com o valor de “amplo” (Filgueira Valverde et al, 2003 [1926] ). Emn Portugal o verbo enfunar refere-se ao facto de tornar panda ou bojuda umha vela, e também ensoberbecer-se, portanto, enfunado “ensoberbecido”, “ufano”, o qual tem relaçom com a voz deste vocabulário, já que alguém com“bomaspeto” pode sentir-se “ufano”.

enfunouxar, u.t.c. prnl. (sic), definido em pretérito como “melhorou de aspeto”; dado que se trata de um verbo julgamos haver um erro na definiçom e que deveria dizer melhorar de aspeto. Diversos dicionários galegos recolhem a voz dialetal desenfouxar com o significado de “limpar” (Valladares, 1 884; Filgueira Valverde et al, 1926) ; este termo provavelmente provenha de desenfouzar, metátese de desenzoufar “tirar as nódoas”. A voz enfunouxar parece um cruzamento de desenfouxar com o verbo enfunar do verbete anterior.

enmorrongado, definido como “mal-humorado”. O verbo enmorrongar-se está recolhido no vocabulário galego de Elixio Rivas Quintas (2003), com o significado de “amuar”, e parece estar formado do termo castelhano morro “focinho”, através da expressom ponerse de morros “amuar”. É evidente que estamos ante a mesma palavra.

escarambón,-na, definido como “tosco, túçaro, de mau carácter”. Conhecemos as vozes carambelo e carambano “pedaço de gelo” e o verbo escarambar- se “formar carambano”, fonologicamente próximo de escarambón. Também está recolhido o termo carambeliom “o que carambelea”, quer dizer “o que anda com as pernas tortas” (Otero, 1977). A voz deste vocabulário poderia estar inspirada nalgumdos termos citados.

guliscañón,-na, definido como “curioso, bisbilhoteiro, coscuvilheiro”. Em galego conhecemos o verbo, com carácter dialetal e de provável origem castelhana, uliscar “procurar com o olfato algumha cousa”. O presente termo é um derivado de um suposto guliscar, deformaçom fonética evidente de uliscar. O seu significado gerou-se a partir de umha ampliaçom semántica inspirada numha comparaçom que tem como base o facto de os animais procurarem coisas farejando, e que também se produziu na voz cheirom, termo que nom se refere apenas a quem cheira muito, mas também a quem gosta de indagar nos assuntos alheios.

incunicado,-a, definido como “acanhado, retraído, tímido”. É a voz galega enconicado de idêntico significado (Rodríguez González, 1958).

langrina, definido como “fame canina”. É voz galega dialetal (Rivas Quintas, 1988) derivada do verbo langrear “desfalecer de fame”.

morrongo,-a, definido como “desagradável, de mau aspeto, de mau carácter”, e sobre o que se adverte que se usa com freqüência em diminutivo quase carinhoso: morronguiño,-a. Em espanhol coloquial morrongo é umha denominaçom do gato, contudo, dada a sua semelhança semántica, cremos que a voz deste vocabulário tem a ver com o já comentado acima enmorrongado. ravesoco, -a, definido como “rebelde, traste, travesso”, e especificando que referido às meninhas se usa em sentido carinhoso. Pola sua raiz e polo seu significado parece ter relaçom com o termo ravesado, variante popular de arrevesado “complicado”, “de feitio difícil”.

ringayete, definido como “insignificante, de pouco espírito”. É um diminutivo do termo dialetal ringalho “indivíduo pequeno e delgado” (García, 1985) , relacionado com a voz popular nalgumhas partes de Portugal cheringalho “indivíduo maltrapilho”, “pessoa pouco desenvolta para a idade”, e mesmo “pessoa de pouco crédito” (Barros, 2002) e que na transcriçom de Cela apresenta provavelmente um erro ortográfico, ao utilizar a letra em lugar do dígrafo .

riquitano,-a, definido como “insignificante, pequeno, de poucas luzes”. Esta voz parace mais umha variante do termo raquítico, igual que outras registadas no galego popular como enriquitado, riquete ou requitoso (García, 1985), todas com o significado de raquítico ou mui pequeno, e com as que a voz compilada apresenta parecido formal.

sayolo, definido como “roupa disforme ou demasiado grande”. É, evidentemente, a palavra saio “antigo vestuário de home, largo e longo” com um sufixo diminutivo de valor pejorativo.

trargo, definido como “o demónio”. É o termo trasgo pronunciado com rotacismo, freqüente em galego popular ante consoante sonora. Ainda que normalmente designa um ser fantástico que fai travessuras de noite nas casas, tampouco é desconhecido o seu uso para denominar o demónio.

urgañar, definido como “bisbilhotar, enredar”. Trata-se da voz castelhana hurgar “remexer” ou “bisbilhotar”, com um sufixo acrescentado, mas o qual nom modifica o significado original.

xanmantelas, definido como “tranqüilo, desinteressado, desligado”. É um composto de xan e mantelas. O primeiro aplica-se ao home sem carácter, e o segundo designa popularmente, em galego, alguém crédulo e acanhado.

zarafolas, definido como “desordenado e que nom acerta umha”. Em galego está recolhido o termo zarafulas (Rivas Quintas, 1978), metátese do mais freqüente larafuzas, e que se aplica a umha pessoa suja.

Das vinte e cinco palavras deste vocabulário sete som vozes galegas, algumhas dialetais, com o mesmo significante e significado com que som utilizadas em galego: arriscar, axofrado, enmorrongado, encunicado (incunicado na lista), langrina, trasgo (trargo na lista) e xanmantelas (composto de xan e mantelas). Sete som vozes galegas com umha pequena modificaçom semántica relacionada com o seu significado original, das quais três apresentam também algumha modificaçom formal: achiscado, chouricinho, donicela (dunicela na lista), enfunadinho, enfunouxar (cruzamento de desenfouxar e enfunar), ringalhete (ringayete na lista e derivado de ringalho) e zarafolas (variante de zarafulas). Seis som vozes galegas dialetais com umha leve modificaçom formal: calanfranón, guliscañón, morrongo, ravesoco, riquitano e saiolo. Há outra palavra igualmente galega, aganduxar, mas com umha modificaçom semántica desmotivada. Duas palavras som castelhanas: chinostra e urgañar, esta última modificada formalmente com um sufixo. Das duas restantes, ativiñar e escarambón, desconhecemos a sua origem, embora para a segunda já tenhamos oferecido algumha hipótese.

Temos perante nós um conjunto estranho de palavras galegas, na sua maioria dialetais e quase todas levemente modificadas. Com efeito, gírias gremiais como o baralhete nutrem-se em grande parte de léxico popular modificado formalmente mediante sufixos, prefixos e metáteses, e também de léxico dialetal (Rodrigues Gomes, 2008: 41-84). Dos termos aqui estudados encontramos cinco modificados com sufixos, ringallete (ringallo + -ete), ravesoco (ravesado + oco, com substituiçom da terminaçom original), riquitano (riquete + ano), saiolo (saio + olo) e urgañar (urgar + -añar), que nada acrescentam ao seu significado original, igual que acontece com muitas vozes do baralhete tomadas do galego e naturalizadas na gíria mediante estes afixos deformadores que dificultam a sua identificaçom para as pessoas alheias ao grémio. Nengum dos cinco sufixos aqui utilizados som os habituais no baralhete, embora encontremos algum exemplo de todos eles nesta gíria: com –ete, solete “só” (do castelhanismo solo); com –oco, fioco “feio”; com –ano, solano “só” (do castelhanismo solo); com –olo, picolo “cravo” (de pico) e com –anhar, picanhar “coser” (de picar).

Também chamam a atençom do estudioso do baralhete outras características deste vocabulário. Por exemplo, das vinte e cinco palavras fornecidas, quinze som adjetivos. Esta classe de palavras é pouco freqüente nas gírias gremiais, e as que conhecemos quase sempre referem conceitos básicos do tipo “bom”, “mau”, “grande”, “pequeno”, “rico”, “pobre”, “porco”, “limpo”, etc. É raro encontrar um adjetivo que designe conceitos tam precisos como “intrometido”, “mal-humorado”, “bisbilhoteiro”, “acanhado”, “rebelde”, “insignificante”, “desinteressado” ou “desordenado”, e mais raro encontrar tantos como observamos no presente vocabulário. Além de ser esquisita a presença de adjetivos que refiram este tipo de conceitos, também o é que para alguns deles se apresentem mais de um, quer dizer, que encontremos sinónimos como dunicela e guliscañón, escarambón e morrongo, ou ringayete e riquitano.

Se som pouco habituais em baralhete os adjetivos do tipo dos citados, também o som verbos com significados tam precisos como “arriscar” ou “melhorar de aspeto”. Também nos chama a atençom que apareça na mesma lista o verbo arriscar com o significado dialetal de “arranjar, enfeitar” e a seguir ativiñar com o de “arriscar”. Finalmente, acrescentar que nos parecem igualmente estranhos os comentários de uso dalgumhas das vozes, como que morrongo “desagradável, de mau aspeto, de mau carácter”, tenha um uso diminutivo de carácter “carinhoso”, ou que ravesoco “rebelde, traste, travesso” se utilize em sentido também carinhoso aplicado às meninhas; tudo isto, sem mais qualquer tipo de esclarecimento, é difícil de integrar com os conhecimentos que temos do baralhete e do seu uso, linguagem secreta utilizada polos membros do grémio com a única finalidade de nom serem entendidos, e cujas mensagens costumam ser as básicas da comunicaçom primária.

Em conclusom, julgamos que o vocabulário que Camilo José Cela atribui ao baralhete nom pode pertencer a esta gíria polas seguintes provas:

1. Das vinte e cinco palavras oferecidas nengumha coincide com as mais de mil e quinhentas recolhidas antes nas compilaçons publicadas por diferentes autores.

2. Todas, exceto três, som termos galegos comuns ou dialetais, quer literais, quer alterados levemente na sua forma ou significado.

3. Apresenta umha proporçom excessiva de adjetivos com significados caracterizadores, de umha precisom rara nos criptoletos gremiais, e só umha das vozes do vocabulário designa um conceito concreto e geral, e nom abstrato e preciso: o termo galego trasgo.

4. O procedimento de formaçom destas palavras nom se ajusta aos padrons conhecidos do baralhete: modificaçom formal de palavras do léxico comum galego por sufixaçom naturalizadora, modificaçom semántica de palavras do léxico comum, empréstimos de línguas estrangeiras, nomeadamente do romani e do basco, composiçom sintagmática, etc. (Rodrigues Gomes, 2008: 39-90).

Em conversa telefónica, a filha de dona Maria Dorinda Ramos Ramos, dona Mariluz Barreiros Ramos, afirmou-nos que as palavras que a sua nai forneceu a Camilo José Cela aprendeu-nas de pequena na sua aldeia natal de Cerreda, no concelho de Nogueira de Ramuim, terra de afiadores, embora na sua família nom tenha havido pessoas que exercessem esta profissom, e que a sua nai supujo procederem do baralhete. Depois do seu estudo pormenorizado estamos certos de que se trata de umha atribuiçom errada, e que o vocabulário publicado por Cela deveria ter sido apresentado, simplesmente, como um conjunto de vozes galegas dialetais, algumhas delas, com certeza, originais.