Ora, Que História É Eça?

RESUMO

Neste artigo, pretendo discutir o realismo literário e historiográfico, a partir das relações entre a Literatura e a História no romance A Ilustre Casa de Ramires (1897), de Eça de Queirós. Defendo a tese de que ao aproximar o narrador do romance e o narrador da História, Eça problematiza questões de verdade e subjetividade, bem como implicações da linguagem nos modos de se pensar e representar a realidade; ou seja, em que medida se pode transpor a realidade pluridimensional do mundo, para a realidade unidimensional que é a escrita? Essa perspectiva de leitura instaura uma virada ideológica no percurso queiroseano, sob a qual seu projeto literário não poderá mais ser lido segundo os ideais cartesianos de razão, verdade e objetividade, pertencentes a um realismo tout court, que a historiografia literária insiste em considerar. Tomo, portanto, como ponto de partida para a leitura do romance português, as teorias de Hutcheon (1991), Ricoeur (1994), White (1994) e Duby (1989), sobre as relações entre Literatura e História, e as teorias de Reis (1975), Real (2006) e Duarte (2004), sobre a postulação de um “último Eça”, mais eclético e liberto das imposições do Realismo/Naturalismo.

ABSTRACT

In this paper, I intend to discuss the literary realism and historiography, from the relationship between the Literature and the History in the Eça de Queirós’s novel A Ilustre Casa de Ramires (1897). I argue that Eça, when approaching the narrator of the novel and the narrator of history, he discusses questions of truth and subjectivity, and too implications of language in the ways of thinking and representing the reality. In other words, what extent it can bridge the multidimensional reality of the world, for the one-dimensional reality of the writing? This perspective of reading establishes an ideological turn in the Eça de Queirós’s work, in wich his literary project can not be read according to the Cartesian ideal of reason, truth and objectivity, beloing to a Realism tout court wich literary historiography insists consider. I therefore, as a starting point for the reading of the portuguese novel, the theories of Huctheon (1991), Ricoeur (1993), White (1994) and Duby (1989), about the relationship between Literature and History, and the theories of Reis (1975), Real (2006) and Duarte (2004), about the postulation of a “last Eça”, more eclectic and freed from the dictates of Realism/Naturalism.

AGÁLIA nº 101 / 1º Semestre (2010): 57-81 / ISSN 1130-3557 / URL: http://www.agalia.net

O homem roga-te, ó Musa, assim como Heródoto outrora rogou, inspiração para esta história que por ora começo. Que não será a de Eça, embora dela se fale, mas a minha própria, pois sobre A Ilustre Casa de Ramires, conto, por mais fiel que me queira parecer, uma outra e nova história…

E se assim o é, tomado pela liberdade que o poder da palavra me investe, começo pelo Começo… “No princípio criou Deus os céus e a terra. E a terra era sem forma e vazia; havia trevas sobre a face do abismo. E o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas. Então disse Deus: — Ajuntem-se as águas debaixo dos céus num lugar, e apareça a porção seca! E assim foi. Chamou Deus à porção seca Terra; e ao ajuntamento das águas chamou Mar. E viu Deus que era bom. Assim, disse Ele: —Façamos o homem à nossa imagem e semelhança, e que domine sobre a terra e sobre o mar. E criou Deus, então, o português. Só não conseguiu ver se era bom…”1.

Provavelmente o leitor, se afeito à beatice ou ao realismo costumeiro que preside o olhar ditosamente científico sobre o que será a teima principal deste artigo: as relações entre Literatura e História — olhar que não deixa de ser beatice também —, já abandonou, findo o último parágrafo, por uma dupla heresia, a leitura que iniciou. A primeira reside na inspiração que, invocada, coloca em xeque a validade deste estudo, que, pelo próprio contexto em que se insere — no âmbito acadêmico —, pretende- se científico; afinal, na nossa ótica (ainda e infelizmente) rankiana de wie es eigentlich gewesen2, a inspiração e a subjetividade não parecem lograr sucesso diante dos métodos e conceitos da Ciência, pois, ora, qualquer impulso expressivo coloca em risco a objetividade alcançada com a eliminação do sujeito, não é mesmo?! A segunda, mais óbvia, realiza-se no plano da produção e recepção do texto religioso, que, alterando a Sagrada Escritura, peca contra um conhecimento maior: o que vem de Deus.

E, contudo, em ambas, pecado algum consigo ver; ou apenas nesta última, por respeito às crenças de cada um, mas heresia que, no entanto, acredito perdoada. Mas partamos antes da justificativa primeira: é que para mim, enquanto sujeito historicamente situado e em função das leituras que trago à tona aqui3, essa eliminação do sujeito em favor da qual advogam as ciências — e ironicamente até as identificadas sob o rótulo de “humanas” — não é senão sinal de uma deflagrada presença da subjetividade; não consigo ver um modo pelo qual se possa falar do estético de modo não estético, sem qualquer proximidade com o objeto. Como seria possível não deixar agir a inspiração? Como objetivar o pensamento que, por natureza, nasce da subjetivação? E, nesse sentido, é mesmo de impressionar que a História, sob seu estatuto científico, continue mesmo considerando uma Musa… Se esquecem as boas aves de que Clio representa também a criatividade? De que amusa, filha de Zeus eMnemosine, como suas oito irmãs, não é senão fusão entre Ciência e Arte, mito, história e ficção?

A segunda, se acredito perdoada, é porque Portugal sempre fora em todas as suas Histórias com H maiúsculo, à exceção talvez de alguns trabalhos do romântico Herculano (e vide aí a ironia), modelos de heróicas robinsonadas (Lourenço, 1992), que embora de um h minúsculo, autênticas e confirmadas pela História Oficial; um cantinho onde o mito se mistura à oficialidade de modo tal, que um olhar atento faria duvidar se o Crusoé de Defoe não fora de fato (e fado) português — haja vista a conhecida Batalha de Ourique, celebrada nos Lusíadas e também na Crónica dos Godos (1139), a qual se em princípio, pelo gênero em que se enquadra, deveria narrar e dispor em ordem cronológica os fatos históricos, tal qual Camões, ao fato histórico sobrepõe o mitológico: não é tanto a guerra que narra, mas a aparição e a provençal ajuda de Cristo na luta do isolado rei D. Afonso Henriques contra o exército de mouros infiéis -. Mas, ora, lembremos que estes são apenas exemplos, e a História, ininterrupta, no mais tardar dizer diabólico: “Meu nome é legião”, lá reservara espaço à luta dos Afonsos, Sebastiões, Mestres de Avis e toda a heróica portuguesada, ratificada pelo documento, pelas testemunhas — Virgem Mãe! —, garantida do seu ser nacional e da mão de Deus.

Para além da ficção da Verdade, o que tais exemplos descortinam não é uma estrutura histórica que organiza o universo literário, mas uma estrutura literária e ficcional que não só organiza, como é produto direto e propulsor da História, produzida, no caso português, sem qualquer expediente retórico, como fruto do injustificável e, contudo, crível: incongruência só explicável pela predileção – que leva a crer Páris, português — de uma tradição intelectual muito mais afeita aos amores de Afrodite que ao raciocínio lógico e à astúcia de Palas Atena. Nesse ponto, talvez não sejamera coincidência—mas quemsabe mesmo providência… —, que a lusa literatura nasça sob a égide daquelas cantigas de amor e de amigo tão carentes, tão passionais diante do para todo sempre inacessível; inacessibilidade que, no entanto, a estes eternos trovadores, só poucas vezes emergiu como consciência de subalternidade. Nem mesmo no nosso Eça, que foi não primeiro (vide certo Garret e certo Herculano), mas quem de maneira mais incisiva a evidenciou, a crítica deixará de apontar o romantismo que na vida literária o inicia. Mas, lembremos: o imbecil é mais imbecil ainda quando não se sabe imbecil… Assim será que mesmo em sua fase romântica, não deixará de identificar aquilo que Portugal, por Lisboa, criou: “Atenas produziu a escultura, Roma fez o direito, Paris inventou a revolução, a Alemanha achou omisticismo. Lisboa que criou? O Fado” (Queirós, 2000b: 190).

O Fado estará aqui não só a revelar o gosto pela melodia angustiante e dolorosa, deflagradora da natureza eminentemente romântica portuguesa; significa também destino, fardo, providência, e, etimologicamente, vem da mesma palavra que dá origem a fada. Nesse sentido, misturando ambas as concepções, fado será o peso de um destino providencial marcado pela ascese dos contos de fada, será o sinal e a prova de uma afeição intelectualmuito mais cara à amabilidade da palavra que à sua (apenas desejada, acredito) exatidão. Ora, mas será esse mesmo romantismo que Eça, pelo fado, já identificara como constituinte identitário da nação, uma faca de dois gumes, como o veremos, aliás, com a nossa Ilustre Casa de Ramires (1897): pois se primeiramente, no Primo Bazílio (1878) e n’O Crime do Padre Amaro4 (1876), será objeto de fuga, por corromper o novo propósito do romance, que “ao invés de imaginar”, tinha apenas de “observar”, e “por processos tão exatos como o da própria fisiologia” (ver excerto do artigo Idealismo e Realismo5); com a Ilustre Casa, Eça, mais maduro literariamente, ciente da improdutividade de sua fuga, começará a duvidar da viabilidade estética daquele seu (desejo de) positivismo ferrenho que, pelo artigo—notamos—, outrora presidira o seu olhar.

Mesmo antes, aliás, em carta enviada à Revue Universelle Internationale no ano de 1884, Eça argumentará, a respeito d’O Mandarim (1880), que “cette oeuvre appartien au rêve et non à la realité, qu’elle est inventée et non observée, elle caractérise fidèlement la tendance la plus naturelle, la plus spontanée de l’esprit portugais” (Queirós, 1907), concepção esta ainda reiterada, posteriormente, no largamente citado subtítulo d’A Relíquia (1887): “Sobre a nudez forte da verdade—o manto diáfano da fantasia”, e nas palavras finais de Ega (Eça?) no romance Os Maias (1888): “E que somos nós? —exclamou Ega.—Que temos nós sido desde o colégio, desde o exame de latim? Românticos, isto é, indivíduos inferiores que se governam na vida pelo sentimento e não pela razão…” (Queirós, 2000a: 493). Para além da contradição demasiado evidente entre estes excertos e o anterior, de seu artigo Idealismo e Realismo, fica clara, tão logo, não só a mudança de perspectiva do narrador, enquanto sujeito discursivo, mas das concepções do próprio autor, enquanto sujeito físico, pensador da literatura6.

O que se percebe nesta Ilustre Casa é um Eça que vê, mesmo nos objetivos inteiramente realistas de sua geração, a dúvida dessa inteireza, já que o propósito de desromantização positivista não fora capaz o bastante para levar à rejeição do “não realista” na descrição daquilo que uma vez aconteceu. E o fato é que embora essa virada ideológica tenha sido já evidenciada algumas vezes pela crítica literária, encontra-se relativamente abafada por uma concepção (ainda) unificada de um Eça objetivo, racionalista e assaz nas suas “descrições” de Portugal, preso a um compromisso realista de reajustar o país à sua verdadeira imagem.

Ora, já há mais de meio século, em 1954, na primeira edição de Lengua y estilo de Eça de Queirós, Guerra da Cal (1981) já deixava entrever, ao analisar o modo como se expande, na obra de Eça, o trabalho de experimentação sobre a língua e seu uso, a transição de um estilo desejosamente onisciente e objetivo (através da utilização de referências históricas, de focalizações externas, descrições pormenorizadas e físicas, etc) a um estilo cada vez mais liberto das imposições do Realismo/Naturalismo (valorizador das focalizações internas, do discurso indireto livre e, consequentemente, da subjetividade). Tese esta coincidente com a de Carlos Reis (1975), que, na esteira de Da Cal, conceberá a produção literária do escritor português dividida em três fases: um Eça romântico — o das Prosas Bárbaras (1866-1867) e da primeira versão d’O Crime do Padre Amaro (1875) —, um Eça atraído pelos valores do Realismo/Naturalismo — na segunda e terceira versões d’O Crime do Padre Amaro (1876 e 1880) e n’O Primo Bazílio (1878) —, e finalmente um Eça eclético, aberto a várias tendências estéticas — com O Mandarim (1880), A Relíquia (1887), Os Maias (1888), A Correspondência de Fradique Mendes (1888), A Ilustre Casa de Ramires (1897), e A Cidade e as Serras (1899).

E mesmo as reflexões mais atuais de Real (2006), Piedade (2003), Duarte (2004) e Loureiro (2009) seguirão a mesma linha, não só na identificação/ pressuposição de etapas da produção literária queiroseana, como na negação de que este último Eça possa se filiar a características essencialistas, pendam elas ao lado patriótico-religioso-nacional, ou ao lado revolucionário-militante. É o que Piedade (2003: 126) chamará de “coexistência e conciliação de opostos” na obra do escritor.

O que, em geral, a leitura de todos estes autores sugere vai além de uma polifonia lingüística (no nível das falas das personagens) e estilística do escritor, pois eles sustentam uma virada ideológica no percurso narrativo queiroseano que, além de recuperar uma atitude de valorização da imaginação, parece criar uma nova visão sobre a História, tão mais devota ao olhar atual que ao de seus contemporâneos (e desconcertante à historiografia literária), segundo a qual não vai recuperar, a priori, os acontecimentos da realidade “por processos tão exatos como o da fisiologia”, mas, à semelhança de nossas mais recentes metaficções historiográficas — se quisermos tomar aqui o termo cunhado por Linda Hutcheon (1991) em sua Poética do Pós-modernismo —, propor novas perspectivas, novos olhares para as múltiplas tonalidades — porque, como a Literatura, trata-se de narrativa e não de reconstituição — comque se pode escrever aHistória.

Na verdade, A Ilustre Casa de Ramires aborda exatamente essa questão da relação entre a escrita literária e a histórica (e, por ventura, a verdade em que ambas, positivistas que eram, insistiam reafirmar), algo que, já no parágrafo de abertura do livro, o narrador anunciará:

Desde as quatro horas da tarde, no calor e silêncio do domingo de Junho […] Gonçalo Mendes Ramires […] trabalhava numa novela histórica, A Torre de D. Ramires, destinada ao primeiro número dos Anais de Literatura e de História, revista nova, fundada por José Lúcio Castanheiro, seu antigo camarada em Coimbra, nos tempos do Cenáculo Patriótico, emcasa das Severinas. (Queirós, 2002: 11)

Neste caso, pela própria fundação da revista, cujo título alude às relações entre História e Literatura, a distinção entre o historiador e o escritor, sutilmente, já começa por se diluir, na medida em que História e Ficção ocuparão, no escopo narrativo da revista, um mesmo lugar. E esta, digamos, interseção entrevista nos Anais é apenas reflexo de uma interseção que é princípio estruturante do próprio romance, uma vez que a tematização da escrita de Gonçalo fará com que, se antes tema, a fusão de diferentes modelos de tempo e história seja seu princípio formador.

Esta fusão se dá como resultado de uma dupla emergência no plano narrativo do romance. Num primeiro plano, se contará a história e o tempo de um Gonçalo Ramires personagem, a cuja narração se faz em terceira pessoa, por um narrador onisciente, mas de uma onisciência diferente (como se verá), embora ainda assim deflagradora de toda a decadência na qual mergulhava Portugal, tão mais próximo a suas colônias que de fato ao europeu. Num segundo plano, se contará a história de Gonçalo enquanto escritor de sua novela, que resgata um tempo de heróicos portugueses, no século XII, quando um de seus bravios avós, Trutesindo Ramires, assiste à morte do filho pelas mãos do rival Lopo de Baião, e se entrega a uma vingança que findará com o rival sob um charco, chupado por sanguessugas até a morte.

Dessa forma, a fusão desses dois planos narrativos no romance trará à tona, pelo contraste, a consciência portuguesa de sua pequenez: se no passado, “em cada lance forte da História de Portugal, sempre um Ramires avultou grandiosamente pelo heroísmo, pela lealdade, pelo nobre espírito” (Queirós, 2002: 12); no presente, avulta, pela figura de Gonçalo, um Ramires covarde e volúvel, a cujo heroísmo, lealdade e nobreza de espírito refletem-se apenas como invenção; mas um Gonçalo bacharel, ora essa, e, contudo, “formado com um R no terceiro ano” (Queirós, 2002: 13). Para além da decadência da ilustre casa – que é apenas metáfora de um Portugal, à semelhança de Gonçalo, incapaz de transferir para o presente glórias que estão fadadas à recordação –, o que a profusão destes dois planos implica não se restringe tão somente ao questionamento, de viés realista, do termos sido, mas também do sou, na medida em que tal profusão pode ser encarada como uma alegorização do tempo real, intransponível para o tempo narrativo – e não estaria aqui, pergunto eu, retornando Eça à valorização do caráter inefável da representação, tão caro às poéticas de estofo romântico?

De qualquer modo, a escrita queiroseana não parece ser aqui o modelo de todo processo do real… ou ainda, a única realidade tout court(!), mas, ao contrário, a perseguição incessante das coisas, que não são as coisas afinal. Assim, se a História emerge – e duplamente – na superfície do romance, não é sob o preceito mais cientificeiro que cientificista, de desromantizar (ou objetivar) uma História que via “mesmo no desembargador, o que comeu numa ceia de Natal dois leitões! […] , uma pujança heróica que prova a raça, a raça mais forte do que promete a força humana, como diz Camões” (Queirós, 2002: 19). Não! Pois para robinsonar (ou subjetivar) a palavra, basta dar-lhe forma. E talvez seja justamente esta consciência que autorize aquele mesmo narrador que percebemos tão onisciente, com tanto detalhe e minúcia na apresentação do nosso Gonçalo Ramires, a cometer o pecado da subjetivação, como o vemos na descrição do tal José Lúcio Castanheiro, fundador dos Anais de Literatura e História: “Mais defecado, mais macilento, com uns óculos mais largos e mais tenebrosos, o Castanheiro ardia todo na chama de sua Idéia: ‘a ressurreição do sentimento português’” (Queirós, 2002: 18; grifo meu).

Por aqui se verifica facilmente, pela falta de objetividade e, consequentemente, de rigor científico, a pouca afeição deste narrador a uma onisciência tipicamente realista. Não parece querer buscar em nenhum momento a explicação dos fatos como dados a serem explicitados de maneira objetiva, e tampouco parece se preocupar com a interferência de uma subjetividade ou com a imparcialidade do discurso. Menos ainda busca apagar a sua voz do texto; pelo contrário, não deixa de marcar-se conscientemente como sujeito da enunciação (vide sua criticidade em relação a Castanheiro). O escritor, como narrador de fatos objetivos, desaparece consideravelmente aqui. Quase tudo o que é dito aparece como reflexo de uma parcialidade carregada de descrições altamente valorativas que parecem abolir a distância entre narrador e objeto narrado.

Isso se reflete também na própria mudança de posição deste narrador: se outrora, como n’O Primo Basílio, privilegiou as (ingênuas) focalizações externas, tão resignadas à mera referenciação de eventos e personagens só pretensamente verídicos; com A Ilustre Casa, será a focalização interna das personagens que será privilegiada. A focalização externa só interessará ao narrador na medida em que sublinhar uma característica interior, ou ajudar a compor uma imagem que será louvada ou rechaçada por ele através de suas descrições, tornadas, como vimos com Castanheiro, abertamente políticas. Tenhamos em conta, a despeito desta focalização interna, o episódio em que Gonçalo, conversando com sua prima sobre uma das histórias de seus antepassados, é questionado por ela se não se envergonhava de saber da referida história por um Fado (e mais uma vez o Fado!), ao passo que o narrador o justificará:

– Pois esta história sei eu, prima Maria! Sei agora pelo Fado dos Ramires, o fado do Videirinha…
D. Maria Mendonça levantou as compridas mãos aos céus, revoltada com aquela indiferença pelas tradições heróicas da Casa. Conhecer somente aos seus anais, desde que eles andavam repicados num fado! …
O primo Gonçalo não se envergonhava?
– Mas por quê, prima, por quê?
O fado de Videirinha era fundado em documentos autênticos que o Padre Soeiro estudou. Todo o recheio histórico foi fornecido pelo Padre Soeiro. O Videirinha só pôs as rimas.
– Além disso, antigamente, prima, a história era perpetuada em verso e cantada ao som da lira…
(Queirós, 2002: 178)

Não nos detenhamos, por enquanto, no questionamento das relações entre História e Arte que o conteúdo da conversa enseja, mas tão só ao ponto de vista técnico-narrativo que o narrador adotará. Notemos que a focalização interna a que me referi acima agirá em dois momentos no excerto: num primeiro momento, sobre D. MariaMendonça, cujo gesto de elevar “as compridas mãos aos céus” é apenas recurso para exteriorização de seu pensamento interior: “Conhecer somente seus anais, desde que eles andavam repicados num fado!… O primo Gonçalo não se envergonhava?”, que provavelmente fora exteriorizado, já que Gonçalo lhe questiona o motivo da vergonha; num segundo momento, agirá sobre ele mesmo, cuja justificativa para acreditar no fado não é introduzida por ele, mas pelo próprio narrador. E, então, lhes pergunto: quem fala aqui? Decerto, o tempo verbal sugere que é a voz do narrador, mas a opinião que ele expressa não advém do pensamento e das crenças de suas personagens?

Certamente, a focalização interna, embora seja responsável pela emergência da subjetividade no discurso, não impede que o modo pelo qual ela é trazida à tona se realize objetivamente (vide os monólogos interiores de autores contemporâneos a Eça). Mas no caso desta Ilustre Casa, a focalização revela mais que a aproximação, a confusão não é só entre a fala do narrador e a fala da personagem, mas também entre posições ideológicas que parecem ambos compartilhar. E isso de fato está muito longe do cânone realista/naturalista, para quem o narrador está sempre num plano superior e distanciado de análise. Ademais, esta focalização vem acompanhada do enfraquecimento das teses deterministas, o que se pode verificar na contraposição de personagens como Pedro da Maia, d’Os Maias, por exemplo, e Gonçalo Ramires: notem quantas páginas são gastas para falar da educação romântica e religiosa que Pedro recebera, tudo para provar a determinância desta educação na sua fraca personalidade e no seu trágico destino. E quantas páginas, pergunto, o narrador gastará para falar da educação de Gonçalo? Poucas linhas.

O que quero com isto dizer não é que o narrador se coloque “como quem duvida, interroga e procura a verdade acerca de suas personagens como se esta não lhe fosse mais bem conhecida que as próprias personagens ao leitor” (Auerbach, 2004: 482), pelo menos não nesse narrador onisciente. Definitivamente, ele não está no mesmo plano do leitor. Mas se a sua posição é revelada e por vezes se imiscui, como pudemos notar, com a de sua personagem, significa que tudo é uma questão de posição diante da realidade do mundo que representa. Não é que a verdade de suas personagens não lhe seja mais bem conhecida que ao leitor, mas que a verdade poderia muito bem ser outra. Chegamos, assim, à mesma substância da crítica que se faz no romance não só à Literatura, mas também à História. Afinal, se a Literatura foi outrora pensada por Eça como Ciência, e se, em um segundo plano, é das relações com a História que A Ilustre Casa trata, por que a reflexão da posição do narrador na Literatura não seria também transferida para o narrador da História, uma vez que uma e outra partilhavam do objetivo comum de analisar positivamente, a posteriori, a realidade?

Ora, a hostilidade do historiador oitocentista em relação à Arte — e à Literatura, em especial— residia, em grande parte, na crença de que o estudo ideal da História seria aquele que, pela explicação dos fatos como dados a serem explicitados de maneira objetiva, não deixasse interferir a natureza inventiva da arte literária. Para esses historiadores, a melhor explicação seria aquela que descrevesse o mais imparcialmente possível um fato, determinado antes por leis gerais, que pela habilidade criativa do historiador. Contudo, o que a historiografia de hoje reconhece7 é que embora essa concepção se aplicasse aparentemente bem às ciências da natureza, é totalmente inadequada às ciências históricas. Isso porque o estudo das realidades históricas não se conjuga em um espaço de dimensões exatas e dedutíveis, mas em um espaço onde cruzam realidades sociais, humanas e culturais. Portanto, qualquer idéia de que o estudo da História é o estudo de uma entidade estável e bem definida, tal como as leis matemáticas, é uma ilusão. Isso significa que, como um estatuto discursivo, a História é menos uma afirmação que uma indagação sobre a verdade dos fatos humanos. Na descrição de um determinado fato, o historiador é antes o sujeito de sua enunciação que o observador de dados.

Nesse sentido, não há possibilidade de se fazer uma observação desinteressada, pois, ao interpretar qualquer coisa que seja, interpretamos à luz de nossos próprios interesses, desprezando e/ou ressaltando pontos que julgamos desnecessários ou relevantes. Como endossa Paul Ricoeur (1994), em Tempo e Narrativa, todas as nossas afirmações, descritivas ou não, se fazem dentro de uma rede freqüentemente invisível de categorias de valores, ou, em outras palavras, toda e qualquer ação verbal, mesmo aquelas que se propõem a realizar-se imparcialmente, são marcadas por juízos de valor. O historiador, como escritor que é, não trabalha com sua documentação e suas fontes num modo unilateral e distanciado de análise. Fontes e documentos não transferem o conhecimento do passado ao presente; trata-se antes de uma dupla articulação, na qual o olhar do historiador é o crivo pelo qual se dá a interação entre o que pensa e o que seus documentos lhe dizem, expressando uma subjetividade inerente ao uso da linguagem. Dessa forma, os fatos históricos, primeiramente enxergados como simples dados, no momento em que são relidos pelo historiador, são também reescritos. E é nesse processo de reescritura que a História, como a Literatura, passa a exibir uma configuração de valores, revelando a possibilidade de ser vista sob diferentes aspectos, e tornando compreensível que “os fatos não falam por si mesmos, mas que o historiador fala por eles, fala em nome deles, e molda os fragmentos do passado num todo cuja integridade é — na sua representação— puramente discursiva” (White, 1994: 141).

Assim, antes mesmo que a Ciência reconhecesse que “o ato individual de apropriação da língua introduz aquele que fala em sua fala” (Benveniste, 1989: 84), Eça já entrevia, com a Ilustre Casa de Ramires, a inviabilidade do “objetivo” diante da linguagem, que a partir do momento em que colocada em uso, é colocada igualmente a serviço das ideologias, dos valores, dos interesses e das posições políticas daqueles que a usam. E por isso mesmo, não se disporá, como no seu Primo Basílio, à revelação d’A Verdade; mas de uma verdade, marcada pela componente subjetiva que lhe é característica. A este respeito, sintomático será o episódio em que Gonçalo Ramires depara-se com José Casco, um homem a quem deixara— e dera a palavra—arrendar-lhe as terras, e que, contudo, proposta de maior quantia fizera com que o fidalgo faltasse com sua palavra e sua honra, provocando emJosé Casco uma ira, no mínimo, justificada. O narrador nos dirá:

Então de repente o Casco cresceu todo, no solitário caminho, negro e alto como um pinheiro, num furor que lhe esbugalhara os olhos esbraseados, quase sangrentos:
[…]—Fuja, Fidalgo, queme perco!… Fuja que o mato e me perco!
Gonçalo Mendes Ramires correu à cancela entalada nos velhos umbrais de granito, pulou por sobre as tábuas mal pregadas, enfiou pela latada que orla o muro, numa carreira furiosa de lebre acossada! Ao fim da vinha, junto aos milheirais, uma figueira brava, densa em folha, alastrava dentro dum espigueiro de granito destelhado e desusado. Nesse esconderijo, se alapou o Fidalgo da Torre, tremendo, arquejando.
(Queirós, 2002: 106.)

Contudo, passado já o ocorrido, e entrando no terreno da memória o fato, será o mesmo Gonçalo a conduzir a narrativa por caminhos outros ao transmitir o acontecido a outrem:

O Casco! O José Casco dos Bravais, bêbedo, rompendo para ele, sem o conhecer, com uma foice enorme, a berrar: ‘Morra que é marrão!…’ E ele na estrada, diante do bruto, de bengalinha! Mas atira um salto, a foiçada resvala sobre um tronco de pinheiro… Então arremete desabaladamente, brandindo a bengala, gritando pelo Ricardo e pelo Manuel, como se ambos o escoltassem, e ataranta o Casco, que recua, se some pela azinhaga, a cambalear, a grunhir…
— Hem, que te parece, Bento? Se não é a minha audácia, o homem positivamente me ferra um tiro de espingarda! […]
—Mas o Sr. Dr. disse que era uma foice!
Gonçalo bateu o pé impaciente:
— Correu para mim com uma foice. Mas vinha atrás do carro…
E no carro trazia uma espingarda.
(Queirós, 2002: 108)

O que subsiste de fundamental nos excertos acima é a transmissão do fato que, tornado história e passado a outrem, privilegia o caráter seletivo da memória, mas não sejamos eufêmicos: “seletivo de acordo com uma certa interpretação [e muito peculiar a Gonçalo…] daquilo que se recorda, com o investimento ideológico inerente a esse processo interpretativo” (Reis, 1986: 95). Gonçalo tem tempo para reelaborar o que foi vivido de acordo com suas percepções individuais e com aquilo que mais lhe convier. Nesse sentido, para além do disfarce de sua covardia em coragem, o que a atitude da personagem faz é reiterar que “só existem verdades no plural, e jamais uma só Verdade; e raramente existe a falsidade per se, apenas as verdades alheias” (Hutcheon, 1991: 146). É essa a consciência que de certa forma ficará implícita em todas as aventuras da personagem recontadas a terceiros, e todas identificarão sua capacidade de não só introduzir na natureza documental do fato, o inventado, mas também de atribuir ao inventado uma natureza documental que lhe garanta solidez, como sua explicação do aparecimento repentino da espingarda, questionado por seu funcionário, no caso de José Casco, nos pode confirmar.

Ora, mas em todo caso, a história não é aqui ainda História… E o que A Ilustre Casa revela é que, assim como os contadores de histórias podem modificar, silenciar ou mesmo eliminar certos acontecimentos do passado, os da História podem fazer o mesmo, como, aliás, o assunto de que tratara o excerto da conversa de Gonçalo e sua prima Maria, outrora deixado em suspenso, já fazia sugerir. É na afirmação de Gonçalo à prima acerca da possibilidade de conhecimento histórico pelo fado (que a propósito, anunciava a História(?) do cavaleiro Lopo Ramires, levantado do túmulo para combater os mouros na Guerra de Infanta — nada original a portugueses), e depois na posterior afirmação do narrador de que a História anunciada pela música de Videirinha era fundada em documentos autênticos estudados pelo Padre Soeiro, que se coloca em evidência não só as pretensões de representação autêntica da realidade histórica, como também a própria noção de que a matéria da História se dá em função da veracidade, enquanto a da Arte se dá em função da possibilidade. O que o fado e, sobretudo, a documentação autêntica que o ratifica representam, é aquilo que num período relativamente recente os historiadores Hayden White (1994), Georges Duby e Guy Landreau (1989) reconhecerão: que os tropos, como desvio de sentido a um sentido segundo, não são inerentes apenas ao discurso da Arte, mas a todo e qualquer discurso, inclusive o da História, que, como Padre Soeiro tão bem deixa entrever, “pressupõe o lirismo, a fantasia, a criatividade e a imaginação, caracteres essenciais do fazer artístico” (Duby e Landreau, 1989: 41).

E é tomado por esta segura compreensão que também o narrador Gonçalo, como o que o narra, sente-se autorizado à sua transgressão. Em princípio, de fato ele se acreditou capaz de recompor, na sua novela, a História de seus avós formidáveis – e História com H maiúsculo, sim. “E como eles ressurgiam sólidos e ressoantes! Era realmente uma compreensão segura daquelas almas afonsinas” (Queirós, 2002: 104). Os documentos estavam lá para o provar: o poema do Tio Duarte que o diga, já que havia contado em detalhes a aventura do avô Trutesindo. Mas, ora, o que este Gonçalo descobre, ao escrever sua novela, é que os problemas da História são semelhantes aos problemas da ficção e, enquanto narrativa que era, também precisava de artifícios de linguagem para gerar uma imagem inteiriça da realidade passada. Assim é, que ao lado do poema tão fidedigno do Tio Duarte – fidedignidade da qual ele começa a se questionar –, ele disporá de livros de Walter Scott e Herculano com os quais, afinal, haveria de dar forma – e forma rígida – à História que pretendia narrar. E é a preocupação com a equidade entre conteúdo e forma, e com a verossimilhança que se precisava garantir com os objetivos que tinha em mente ao historiar, o que provocará nele a incerteza: será que o poema do Tio Duarte não seria incongruente com a realidade que pretendia narrar? E é tão ciente da negativa que, Gonçalo, na transposição de seu poema-documento para a sua novela, o modificará:

[Gonçalo] Repassou lentamente o capítulo 2 que o não contentava. […] O tio Duarte, da Casa das Balsas, não era um Ramires, não sentia hereditariamente a fortaleza da raça – e, romântico plangente de 1848, inundara logo de prantos românticos a face férrea de um lidador do século XII, dum companheiro de Sancho I. Ele porém, devia restabelecer os espíritos do senhor de Santa Ireneia dentro da realidade épica. E, riscando logo esse descorado e falso começo de capítulo, retomou o lance mais vigorosamente, enchendo todo o castelo de Santa Ireneia duma irada e rija alarma.
(Queirós, 2002: 129)

O que o inventivo Gonçalo ensina, ao modificar o “descorado e falso começo” de sua novela apoiado sobre a verdade do poema(-documento? ou, quem sabe, monumento8) do tio, é mais ou menos aquilo que já ensinara à prima no episódio do fado: “Antigamente, prima, a história era perpetuada em verso e cantada ao som da lira…”(Queirós, 2002: 178). Melhor dizendo, é que para apresentar uma visão daquilo que realmente aconteceu, a própria História depende de convenções de narrativa, linguagem e ideologia, e como sistema cultural de signos, assim como a Literatura, é uma construção marcada pela ideologia que o historiador, tal como o escritor, ou até o fadista, como vimos, enquanto sujeito histórico, inscrevem na sua representação. E é por isso que Gonçalo se sentirá à vontade para rasurar todo o começo de seu capítulo, porque mais que um desejo, modificar a História era, no seu caso, uma imposição, uma vez que a reconstrução do passado dentro da realidade épica exigiria dele a verossimilhança interna e externa que esta realidade pedia.

A partir desse gesto não é somente o discurso provado pelo documento histórico que é adulterado, mas a própria noção de autenticidade e rigor do documento: se outrora pensou que não importava quem lhe houvesse contado que “D. Sebastião morreu em AlcácerQuibir… São os fatos. É a história” (Queirós, 2002: 95); agora, após o percurso literário que sua novela propicia, se dá conta de que a História, mesmo que se pretenda oficial e que os documentos lhe provem a oficialidade, também tem sua pitada de cor. Não à toa é que duvidará mesmo daquela sua reconstrução sólida e segura dos seus avós formidáveis:

Se ao menos o consolasse a certeza de que reconstruíra com luminosa verdade o ser moral desses avós bravios… mas quê! Bem receava que sob desconsertadas armaduras, de pouca exatidão arqueológica, apenas se esfumassem incertas almas de nenhuma realidade histórica!… até duvidava que sanguessugas recobrissem, trepando num charco, o corpo dum homem e o sugassem das coxas às barbas, enquanto uma hoste mastiga a ração!…
(Queirós, 2002: 257)

A vingança do bravo Trutesindo, antes pensada nítida e irrecusável, terá sido realmente praticada? Não será incongruência? Decerto, a este Gonçalo não cabe a coragem, como aquela que tomou Raimundo Silva, a conhecida personagem saramaguiana, que acrescenta um “não” na sua História do Cerco de Lisboa (1989), passando de revisor de textos a autor da História; porque embora este Gonçalo realmente lamentasse que seu avô Trutesindo “não matasse outrora o rival, no fragor da briga, com uma dessas cutiladas maravilhosas e tão doces de celebrar, que racham o cavaleiro e depois racham o ginete, e para sempre retinem na história!” (Queirós, 2002: 247), ele não a modifica, ao menos não no que concerne ao escopo central. Contudo, seu questionamento traz em si um ônus semelhante ao que a negativa do romance saramaguiano engendra: “o de reestruturar o discurso em consonância com a modificação realizada” (Roani, 2007: 59). Ademais, ao transpor as realidades e temporalidades do poema para a sua novela, já não havia instaurado um “não” em sua História? Já não havia lhe modificado ao transpor a realidade passada do poema para a realidade presente de sua escrita?

É uma forma de capturar o tempo passado que se verifica aqui, mas de uma maneira diferente porém, pois esta capturação vem acompanhada de uma reorganização sob a perspectiva do presente. É uma idéia de passado determinada pela vontade de quem se propõe a recuperá-lo, como forma de fundir discursos de épocas distintas sob um mesmo chão, que é o chão da escrita. Contudo, essa fusão no âmbito temporal, acompanhada também, como lembra Duarte (2004), no âmbito estrutural, pela fusão de estruturas narrativas distintas – romance, novela histórica, poema épico –, antes de digressão ou infração do narrador e da personagem contra a Verdade, é a própria condição para que este Gonçalo narrador, como aquele que o narrara, cometa o seu pequeno delito; tomado pela consciência polifônica das diversas vozes e diversas escritas que se cruzam em sua escritura, ciente de que tudo é uma questão de posição diante da realidade do mundo que representa, afinal descobrira que a recuperação do passado, antes de um compromisso com a realidade, é moldável pela subjetividade de quem o reconstrói.

Dessa sorte, mesmo que a atitude de Gonçalo não descortine, como no “não” daquele Raimundo Silva, uma atitude de subversão sobre o que até então estava estabelecido no imaginário português; como no romance saramaguiano, ela acaba por tornar as estruturas míticas que por tanto tempo governaram a História Portuguesa, tão cheia de Trutesindos, “não como uma pré-condição do texto [que se deveria negar] , mas como emergentes do texto – emergindo do texto, ele próprio como o rendezvous intertextual de uma textualidade carregada de tempo” (Bann, 1994: 99). O que quero com isto dizer não é que a imagem de eternos cavaleiros, que em alto-mar ou em terra, avultavam sempre na História de Portugal “pelo heroísmo, pela lealdade e pelo nobre espírito” (convenhamos, sempre algo como uma pré-condição textual; vide a já citada Crônica dos Godos), seja desconstruída. Não é que a fiel e real imagem portuguesa seja levada ao espelho para se dar conta do recalque que a fez por tanto tempo pensar ser grande, quando na verdade era pequena. Como já disse aqui, não é em termos de verdade e falsidade que esta história poderá se conjugar. É como marca de textualidade que esta imagem emergirá, uma textualidade definitivamente histórica e carregada de favores e intenções por parte daqueles que ao longo do tempo a construíram, e que não deve ser negada, apenas reconhecida. Afinal, o que este Eça percebe, e o percurso escritural de Gonçalo o evidencia, é que o próprio impulso realista de quebrar o mito, de desromantizar a História, ao buscar aderir-se ao fato exata e fielmente do modo como ocorreu, já trai seu propósito na tentativa mesma da descrição, pois revela o insucesso já (des)esperado de uma iniciativa que tenta, na fidedignidade e na verossimilhança, desculpar-se e iludir quanto à sua natureza eminentemente imaginativa e ficcional.

Ademais, do mesmo modo que nem tudo o que reluz é ouro, também nem tudo o que é dourado será bijuteria… E até a covardia e o medo que Gonçalo tanto disfarçou em suas (re)invenções da História (e se digo re, é porque ainda a acredito como invenção), uma hora chega ao fim. Assim será que se, em sonho, receberá o doce neto, as armas de seus avós para vencer a sorte inimiga, também na vida as receberá de bom grado: para espanto do leitor, passando da covardia à coragem, Gonçalo enfrentará um valentão que havia lhe insultado várias vezes, e deixará ele e o comparsa – que, na tentativa de defender o amigo, quase acertara-lhe um tiro de espingarda –, em poças de sangue. Ora, o que este Eça percebe é aquilo que Machado sempre lhe cobrara: a vida não tem apenas seu lado negro, decadente, e o que faz do romance, romance, não é a contraposição ao épico, pela negação dos valores altivos (e só altivos) daquele herói cujo Ulisses foi símile representante (valores os quais, através dos fracos e decadentes Padres Amaros, Amélias, Luísas, Eça negou); mas a compreensão do ser humano em sua possibilidade de inteireza, com seu bem e com seu mal, em sua covardia e em sua coragem, como neste Gonçalo, apesar de inconcluso, muito mais inteiro que o épico Ulisses, porque mutável dentro de um destino sobre o qual é ele que tem o poder.

É por isso que disse acima que a intenção não será negar as estruturas míticas (e românticas) que por tanto tempo governaram a imagem que os portugueses fizeram de si mesmos. Porque modificar o tempo ou a História não é só artifício de Gonçalos, ou de Raimundos, mas, neste vasto mundo, artifício humano, como a transmissão da empresa heróica de Gonçalo (finalmente) Ramires pela boca do povo, aliás, deixara sugerir:

Pois o povo não se arreda! E a mostrar sangue, no chão, e as pedras por onde se atirou a égua do fidalgo… E agora até contam que foi uma espera, e que desfecharam três tiros ao fidalgo, e que depois adiante no pinhal ainda saltaram três homens mascarados, que o fidalgo escangalhou… – Eis a lenda que se forma – declarou Gonçalo.
(Queirós, 2002: 238)

“Eis a lenda que se forma”, diz Gonçalo. Eis a lenda que se faz História, diria eu. E ratificada pelo documento, senhores, já que, no dia seguinte, é a mesma lenda que se anuncia nos jornais de Lisboa, de Porto, de Oliveira e da vistosa Vila Clara.

Mas não nos embrenhemos no terreno injustificado de a combater em busca da verdade! Lembremos que Deus após ter criado o homem à sua imageme semelhança, e designado o seu domínio sobre a terra e sobre o mar, criou o português. E, contra essa verdade, Musa nenhuma nos defenderá! Afinal, o que tanto insisti aqui não foi que a verdade não pode ser concebida senão enquanto existência plural? Além do que, é aquilo que o narrador nos diz acerca deGonçalo Ramires, nas palavras finais do romance, comparado a Portugal:

Que importa que tenha defeitos, que tenha culpas, que esqueça mesmo o dever, que ofenda mesmo a lei? Mas quê! É amorável, generoso, dedicado, serviçal, sempre com uma palavra doce, sempre com um rasgo carinhoso… E por isso todos o amam, e não sei mesmo, Deus me perdoe, se Deus também o não prefere…
(Queirós, 2002: 284)

Ora, já disse antes que há invenções literárias (e também históricas) que se impõem à memória mais pela amabilidade da palavra que pela apenas desejada exatidão. Mas se a exatidão é apenas desejada, pergunto eu: que importa que estas Histórias de Portugal com H maiúsculo tenham suas robinsonadas, suas fantasias, ofendam a verdade? Mas quê! A verdade não é plural? E por que ignorar a odisséia marítima de mítica e mística aventura de um sonho sonhado junto português? Portugal não poderia ter mais instigante resposta: que Gonçalo seja sua personificação. Porque é a partir da “identificação alegórica Portugal-Gonçalo” (Da Cal, 1961), que se revela a constituição identitária da nação, inseparável dos mitos e das romantizações, por sua vez inseparáveis da gênese da História, pois dela são elementos fundacionais. Buscar compreender o discurso histórico e a arte literária dessa forma é compreender que a retidão de qualquer representação narrativa, seja ela portuguesa ou não, como lembra Stephen Bann (1994: 23), “é uma invenção retórica; e que a invenção de histórias é a parte mais importante da autocompreensão e da autocriação humana”. Além do mais, lembremos, estas (H ou h?)istórias são amoráveis, sempre com palavras doces, com religiosidade… E Deus de fato as prefere! Vieira não está aí para o provar?