Fernando Pessoa: O Cientista de Depois de Amanhã

 

Este artigo propõe uma abordagem do poema “Análise” (1911), de Fernando Pessoa, visando demonstrar como o texto engendra, sob o disfarce lírico-amoroso, e através de sua aproximação com o Livro do desassossego, uma das mais altas sínteses do pensamento desdobrado e da poética da inteligência que singularizam o lirismo reflexivo de seu autor

Esse cientista de depois de amanhã
terá um escrúpulo especial pela sua própria vida interior.
Livro do desassossego .

Para poder obter a perfeição
fora precisa uma frieza de fora do homem
e não haveria então coração de homem
com que amar a própria perfeição.
Livro do desassossego .

Análise

Tão abstrata é a ideia do teu ser.
Que me vem de te olhar, que, ao entreter.
Os meus olhos nos teus, perco-os de vista,.
E nada fica em meu olhar, e dista.
Teu corpo do meu ver tão longemente,.
E a ideia do teu ser fica tão rente.
Ao meu pensar olhar-te, e ao saber-me.
Sabendo que tu és, que, só por ter-me.
Consciente de ti, nem a mim sinto..
E assim, neste ignorar-me a ver-te, minto.
A ilusão da sensação, e sonho,.
Não te vendo, nem vendo, nem sabendo.
Que te vejo, ou sequer que sou, risonho.
Do interior crepúsculo tristonho.
Em que sinto que sonho o que me sinto sendo

— (Pessoa, 1965: 106-107)

I

Escrito em dezembro de 1911, “Análise” permaneceu inédito durante a vi- da de Pessoa, tendo sido publicado pela primeira vez na biografia de João Gaspar Simões, Vida e Obra de Fernando Pessoa – história de uma geração (vol. II. Amadora: Bertrand, 1950). Posteriormente, o poema recebeu no Cancioneiro (1942) um lugar incerto, não podendo, a exemplo de tantos outros poemas desse conhecido volume, como “Pauis” e “Chuva Oblíqua” — entre aqueles que dialogam mais abertamente com as vanguardas — e os muitos sonetos ali reunidos, ser tratado como uma “canção”.

Embora planejado por Pessoa, entre outros projetos esboçados e igualmente abandonados, o Cancioneiro não é propriamente um livro, tampouco um título original, mas uma reunião de poemas heterogêneos entre si proposta pelos primeiros organizadores da “obra poética”. Com exceção a Mensagem (1934), basicamente reuniu-se ali toda a poesia do ortônimo escrita em português conhecida até então. A julgar pelo gênero indicado no próprio título do volume, é de se supor que Pessoa tivesse da- do outro fim a “Análise”1 . Diferentemente da maioria dos poemas que a Ática (e por decorrência a Nova Aguilar) reuniu no Cancioneiro , no qual predominam as quadras, “Análise” não apresenta partição estrófica, cons- tituindo-se de um único bloco de 15 versos. Assim, será prudente levar em consideração que o tradicional (mas atualmente cambiante) “lugar” do poema é um espaço produzido posteriormente à morte de Pessoa, e que as possíveis relações que se podem estabelecer entre este e os demais poemas daquela edição não são mais ou menos legítimas do que outras relações. O Cancioneiro , tal como o conhecemos hoje, é um contexto hermenêutico de risco. Suas fronteiras são pálidas linhas imaginárias. Sua verdade é uma verdade cultural. Como tal, ela estará sempre a reclamar deslocamentos.

Assim, nossa primeira decisão será a de tratar “Análise” com certa independência com relação a esse espaço tradicional.

II

A disposição espacial do poema em monobloco sugere uma forma poética indefinida. No entanto, se atentarmos para o seu padrão métrico (decassíla- bos heróicos, com variação para o sáfico e para o martelo agalopado), desta- camos do conjunto justamente seu último verso, por se tratar de um alexandrino, o que nos permite descrever o poema como composto por 14 versos + 1. O mesmo pode ser feito com relação à disposição de suas rimas. Considerando todos os versos, temos rimas emparelhadas, duas a duas, até o décimo (AA, BB, CC, DD, EE) e a partir do décimo primeiro o esquema muda para FGFFG. No entanto, se, por sugestão métrica, excluirmos nova- mente o último verso, o sistema rímico nos ajuda a enxergar o poema sob outra perspectiva, que agrupa seus versos do seguinte modo: AABB, CCDD, EEF, GFF. Desse modo, a identificação de grupos rímicos possibili- ta-nos encontrar no poema dois quartetos e dois tercetos, excluindo-se o verso final. E se levássemos a cabo essa leitura e acrescentássemos um ponto final ao 14º verso, teríamos efetivamente um novo final para o poema, com sentido completo: “Não te vendo, nem vendo, nem sabendo / Que te vejo, ou sequer que sou, risonho / Do interior crepúsculo tristonho”.

Novo ou antigo final? Será improvável que Pessoa tenha chegado a compor um soneto antes de nos ter legado os quinze versos de “Análise”? Não conhecêssemos o 15o verso, e a imagem (a única, aliás) dessa face com um riso triste seria um arremate em chave de ouro para o poema. Um riso, aliás, falsamente paradoxal, porque vazio, meio cínico meio irônico, que parece se desenhar naturalmente no eu lírico diante da revelação do vazio de tudo (incluindo ele próprio). Não estarmos diante de um soneto não impede que entrevejamos nesse bloco de quinze versos a sombra des- sa tradicional forma fixa, e que o enxerguemos, desse ângulo, como um exemplo de sua subversão.

III

Seria possível identificar que tipo de soneto é esse? A primeira impressão que temos ao ler “Análise” é a de que se trata de um poema de amor: “Tão abstrata é a idéia do teu ser / Que me vem de te olhar, / que, ao entreter / Os meus olhos nos teus, perco-os de vista”. Há um “eu” que se dirige a um “tu”, que, aos olhos do leitor, pode representar a figura da “mulher amada”. Essa não é uma impressão óbvia, porque não se define em momento algum o estatuto desse outro ser no poema, do mesmo modo que a palavra “amor” é textualmente ignorada. No entanto, a con- jugação do verbo “ser” na segunda pessoa do presente do indicativo, “Sabendo que tu és”, convida-nos a “humanizar” esse “tu”. Acrescente-se a isso o enlevo do eu lírico, que, no seu mais forte desejo de alcançar o outro, perde-se a si mesmo (“nem a mim sinto”), e temos um forte indí- cio de amor-paixão no poema.

Em “Análise”, o desejo pelo outro o transforma numa entidade abstra- ta, converte-o num “tu” sem realidade física, produto da racionalização do eu lírico, que, de tanto raciocinar, auto-anula-se. Consciente do outro, deixa de sentir a si mesmo. Assim como o “tu” é convertido em idéia do “eu”, o próprio “eu” passa a ser objeto de si mesmo, fundido ao “tu” como abstração.

Nesse sentido, Pessoa parece reler um tema clássico. É conhecida a citação de Petrarca, “L’amante nell’amatto si transforma”, no soneto de Camões (um soneto , aliás) em que a análise do sentimento amoroso não se dá pelo plano da percepção (o eu lírico que observa a mulher amada), mas por sua abstração (o eu lírico que encontra em si a amada): “Transforma- se o amador na cousa amada, / Por virtude do muito imaginar; / Não tenho logo mais que desejar, / Pois tenho em mim a parte desejada”. Apesar de no poema de Pessoa a dimensão amorosa não ser explícita, ela pode ser compreendida de forma análoga à camoniana: o “eu” pessoano abstrai o “tu” ao qual se refere de modo similar ao que o “amador” camoniano imagina a “amada”.

Ambos os poemas tratam da temática da idealização do outro. No entanto, se no soneto de Camões o ser amado é uma projeção do sujeito desejante, que uma vez consciente disso percebe a inutilidade do desejo anímico (“Pois tenho em mim a parte desejada”), já no seu arremate, esse mesmo sujeito confessa a insuficiência dessa abstração (“O vivo e puro amor de que sou feito, / Como a matéria simples busca a forma”). Já em “Análise”, o ser desejado se mantém preso ao pensamento, é irremediavel- mente produto da imaginação, e o desejo se converte num desejo do desejo, o amabam amare, de Santo Agostinho.

Em “Análise” não temos nem a figura da “mulher” nem a do “eu enamorado”. Considerando-o por este viés, talvez ele seja mesmo o contrário do que aparenta, isto é, um poema sobre a impossibilidade do amor, um poema profundamente trágico, baseado na percepção de que para este “eu” que fala, a sensação não perdura mais do que um estalo, pois é logo convertida em consciência da sensação, ou seja, em idéia. Podemos encontrar um certo desencanto, inclusive, na idéia da existência de seres que se possam completar, a exemplo dos casais amorosos: “Para com- preender”, afirma Bernardo Soares (81), “destruí-me. Compreender é es- quecer de amar”. Ou ainda:

Nós não podemos amar, filho. O amor é a mais carnal das ilusões. Amar é possuir, escuta. E o que possui quem ama? O corpo? Para o possuir seria preciso tornar nossa a sua matéria, comê-lo, incluí-lo em nós… E essa impossibilidade seria tem- porária, porque o nosso próprio corpo passa e se transforma, porque nós não possuímos o nosso corpo (possuímos apenas a nossa sensação dele), e porque, uma vez possuído esse corpo amado, tornar-se-ia nosso, deixaria de ser outro, e o amor, por isso, com o desaparecimento do outro ente, desapareceria… (Soares, 329)2

“Análise” não é um poema de amor tradicional — não é, digamos, “amoro- so” no tom ou na perspectiva, mas um “poema de amor” (se, a essa altura, essa expressão ainda mantiver alguma referencialidade em nossas mentes) ao modo de Pessoa. Isso porque radicaliza um procedimento de escrita que seu autor definiria como próprio desse gênero em um ensaio chama- do “Erostratus — Ensaio sobre a fama póstuma de obras literárias”:

Qualquer indivíduo que seja, de algum modo, poeta sabe bem como é muito mais fácil escrever um bom poema (se os bons poemas porventura se encontram ao alcance de tal ho- mem) acerca de uma mulher que o interessa muito do que acerca de outra por quem está profundamente apaixonado. O melhor gênero de poema de amor tem geralmente por te- ma uma mulher abstrata.
(Pessoa, 1973: 250)

Todo poema de amor é uma idealização. Aquele que um dia definiu o amor, sentimento tão contrário a si, como “fogo que arde sem se ver”, não experimentava, no ato de composição dos seus versos heróicos, o arreba- tamento desse sentimento em seu estado puro. Pelo contrário, ele distan- ciava-se dele. Pessoa previa que as sensações deveriam ser intelectualizadas para que pudessem ser transfiguradas literariamente. Através da abstração do sentimento, ele pode ser formalizado num poema e alcançar êxito estético. Fingir a dor que deveras sente é, possivelmente, a declaração mais exata sobre o ofício do poeta.

IV

Assim como “Análise” pode ser formalmente identificado como uma subversão do soneto, e se já indicamos qual seria provavelmente esse soneto, estamos à altura de encará-lo como um falso poema de amor. Isso porque, para Pessoa, tomar posse das coisas e das pessoas significa convertê-las em abstrações: “O que é certo é que as coisas que mais amamos, ou julgamos amar, só têm o seu pleno valor real quando simplesmente sonhadas. (…) toda a gente interessante é convertível em sonho” (Soares, “O Sensacionista”, 470). Assim, a interpretação lírico-amorosa do poema deve levar em conta a distância que o eu lírico mantém do plano físico – a noção, em suma, de que para gozar o mundo é preciso apreendê-lo, não pelos sentidos, mas como idéia: “Se tocares o teu sonho morrerá, o objeto tocado ocupará a tua sensação” (379). No poema, o eu lírico confessa à pessoa para quem di- rige o olhar que os olhos que a vêem não retêm sua imagem, uma vez que es- ta foi convertida em idéia da imagem. Olhar para o outro é uma experiência fugidia, é já não mais percebê-lo, mas borrar seus contornos concretos e re- fazê-lo pela imaginação, convertê-lo em sonho. Numa expressão, esse eu líri- co sente e imediatamente pensa que sente – olha e já se pega olhando.

Todo o poema se perfaz num espaço intermediário entre dois grupos semânticos: 1) de um lado as repetições dos verbos “ver”, “olhar” e “sentir”, bem como de seus substantivos derivados, “olhos”, “vista” e “sensação”; 2) do outro, os termos “abstrata”, “ideia”, “pensar”, “saber”, “cons- ciente” e “ignorar”. Precisamente, o poema transcorre entre o sentir e o pensar, repousando, já em 1911, em um dos axiomas centrais dessa poesia, isto é, “o que em mim sente ‘stá pensando” (Pessoa, 2001: 144). Nos pró- prios termos do autor (Soares, 484), é “entre a sensação e a consciência dela” que se situa “Análise”:

É entre a sensação e a consciência dela que se passam todas as grandes tragédias da minha vida. Nessa região indetermi- nada, sombria, de florestas e sons de água toda, neutral até ao ruído das nossas guerras, decorre aquele meu ser cuja visão em vão procuro…

“Aquele meu ser cuja visão em vão procuro”, eis o eco da passagem acima. Ora, em “Análise” lemos: “Tão abstrata é a ideia do teu ser / que me vem de te olhar…” Não será este “tu” já o fruto do equívoco da relação entre o eu e o outro, isto é, não será o “tu” resultado de um eu rimbaudianamente extraído e estranho a si, um eu “outrado”? “Análise”, ou (psic)análise, pro- cede pela transformação em objeto do próprio sujeito da elocução. Analisando-se pela fala, o eu lírico é um ser abismado na clivagem entre sujeito e objeto. O eu é um tu. Pessoa expõe a ferida aberta da experiência poética — tragicamente, a sua única forma de existência.

V

“Análise” pode ser lido segundo dois movimentos distintos, marcados pelo ponto final no nono verso. A partir daí, salta aos olhos a oclusão das rimas (-into, -onho, -endo, em oposição a -er, -ista, -er, -me, da primeira parte). Esse fechamento sonoro está diretamente relacionado à maior introspecção da segunda parte do poema, em que a investigação do eu se torna, digamos, mais crepuscular (“Do interior crepúsculo tristonho”), em oposição à luminosidade que as palavras “olhar”, “vista”, “ver”, “longemente” e “corpo” lançam sobre a primeira. Esse contraste entre claro e escuro marca bem as duas estações temáticas do poema, e nos guia para o seu arremate. O 11o verso (“A ilusão da sensação, e sonho”) abre um novo esquema rímico no poema: FGFFG. É interessante atentar para essa alteração de padrão, não como um dado em si, mas porque ela está diretamente relacionada ao modo como lemos o poema. Ele também difere do padrão rítmico heróico, devido às pausas marcadas na quarta e na oitava sílabas métricas (sáfico). Além disso, só podemos lê-lo como os decassílabos anteriores se evitarmos (muito artificialmente) a elisão inicial (A / i-lu-são, ao invés de Ai-lu-são). Consideremos, portanto, que os demais versos reclamam, se não mesmo impõem, uma leitura mais cadenciada deste, que é reforçada ainda pelo uso da vírgula. E quanto maior a cadência, maior a distribuição de ênfase sobre seus termos constituintes.

Ao que parece este é, ao menos do ponto de vista formal, um verso gerador de tensão no poema. Note-se que o uso da rima interna em “-ão” ganha o reforço das vogais fechadas e da rima em “-onho”, conferindo especial densidade ao verso. Em meio à avalanche sintática do poema, repleto de interligações entre os versos ( enjambements), a leitura em alvoroço é refreada pelo uso duplo da vírgula, que isola a expressão “, e sonho,”. Freio de mão, portanto, na velocidade-prosa. Tal como o termo “sonho” vem circunstanciado neste verso, e no poema, em que dá abertura a um novo esquema rítmico, não parece ser mero acaso as rimas terem se alterado a partir de então, de emparelhadas para misturadas. Ora, isso ocorre justamente quando se anuncia o sonho, isto é, a supressão da ordenação lógica e da razão. O mesmo termo é reforçado pela aliteração das sibilantes no próprio verso e nos seguintes, por sua repetição no verso final, e por duas rimas em “-onho” — na verdade a própria palavra “sonho” está contida naquelas com que rima: “tristonho” e “risonho”.

A partir da palavra “sonho” há uma nova e bastante sonora distribuição rítmica no poema: recheados de vírgulas, os versos 12 e 13 lêem-se em martelo agalopado (um ritmo fortemente marcado, com as tônicas na terceira, sexta e décima sílabas). Nessa nova e forte cadência, a profusão de rimas internas e externas em “-endo” e “-onho” lançam o leitor numa atmosfera mais espessa; por sugestão, onírica.

Chegamos ao verso final do poema: “Em que sinto que sonho o que me sinto sendo”. Seguramente, este é o verso mais sonoro entre eles, de uma fluidez melancólica provocada pelas aliterações das sibilantes e das nasais. Ao mesmo tempo, trata-se de um labirinto sintático, particularmente enigmático. Esse alexandrino clássico (com hemistíquio na sexta sí- laba, justamente a palavra “sonho”) funciona como (nova?) chave de ouro para o poema. Ele parece ter sido composto por um processo de reversibilidade, tendo a palavra “sonho” como espelho: “eu sou (eu sonho) logo eu finjo” // “eu finjo (eu sonho) logo eu sou”. Esse verso — espelhado, portanto — apresenta-nos um sujeito transformado em abismo, um abismo aberto por dentro, de fundo desconhecido entre os extremos do sentir e do pensar.

Possíveis modos de parafraseá-lo simplificadamente seriam: “imagino sonhar o que sou”, ou ainda, “finjo ser o que realmente sou”. Mas o emprego do gerúndio no final (“sendo”) acrescenta a essas simplificações a reveladora idéia de continuidade: “enquanto finjo ser o que me sinto ser, eu sou!”. É tão somente como fingidor, enquanto eu me sonho e me construo outro, que realmente posso ser. Eis a experiência moderna e original de Pessoa: “a experiência de certo ‘sujeito-vazio’, que não se beneficia mais do conforto logocêntrico, nem se ilude mais com a falsa unidade ‘profunda’ da pessoa psicológica” (Perrone-Moisés, 73). VI Esse sujeito vazio, desde o primeiro verso do poema, transforma o concreto em abstrato, caminha do que está perto para o que está longe (seja o referencial o “tu” ou o “eu”). Podemos afirmar com segurança que o sentido único do poema é aquele que orienta a perspectiva do particular para o geral. Ora, o que Pessoa terá a dizer a esse respeito?

Creio esta teoria mais lógica — se é que há lógica — que a aristotélica; e creio-o pela simples razão de que, nela, a arte fica o contrário da ciência, o que na aristotélica não acontece.
Na estética aristotélica, como na ciência, parte-se, em arte, do particular para o geral; nesta teoria parte-se, em arte, do geral para o particular, ao contrário de na ciência, em que, com efeito e sem dúvida, é do particular para o geral que se parte. E como ciência e arte são, como é intuitivo e axiomático, actividades opostas, opostos devem ser os seus modos de manifestação, e mais provavelmente certa a teoria que dê esses modos como realmente opostos que aquela que os dê como convergentes ou semelhantes.

(Campos, 254-255)

Esta passagem de “Apontamentos para uma estética não-aristotélica”, tex- to assinado como “Álvaro de Campos”, assinala a busca de uma estética própria e que represente o contrário da “estética aristotélica”. Se, nas pa- lavras de Campos, a estética aristotélica caminha, “sem dúvida”, e a exem- plo da ciência, do particular para o geral, a nova estética deverá ser, “como é intuitivo e axiomático”, o oposto da ciência. Lembremos que a primeira publicação desse texto se deu nos números 3 e 4 da revista Athena (Dez.- Jan. 1924-1925), isto é, treze anos depois da escrita de “Análise”. Se o exu- berante Campos “não-aristotélico” (aquele que valorizava, em suas pró- prias palavras, a “força” e a “potência” em detrimento da “beleza” e da “harmonia”) é facilmente entrevisto como oposto à contenção reflexiva do ortônimo, também não nos caberá compará-los no tocante à posição que ocupam face à ciência? Nesse âmbito, podemos nos referir ao autor da “Ode Marítima” como o oposto de um cientista, ao passo que o autor de “Análise” se comportaria, de modo contrário ao que é “intuitivo e axiomá- tico” — em sua lida para compreender o mecanismo da percepção e da consciência sobre a própria alma — tal qual um cientista munido de um instrumento imaginário e muito preciso:

Penso às vezes com um agrado (em bisseção) na possibilidade futura de uma geografia da nossa consciência de nós próprios. A meu ver, o historiador futuro das suas próprias sensações poderá talvez reduzir a uma ciência precisa a sua atitude para com a sua consciência da sua própria alma. Por enquanto vamos em princípio nesta arte difícil — arte ainda, química de sensações no seu estado alquímico por ora. Esse cientista de depois de amanhã terá um escrúpulo especial pela sua própria vida interior. Criará de si mesmo o instrumento de precisão para a reduzir a analisada. Não vejo dificuldade essencial em construir um instrumento de precisão, para uso autoanalítico, com aços e bronzes só do pensamento. Refiro-me a aços e bronzes realmente aços e bronzes, mas do espírito. É talvez mesmo assim que ele deva ser construído.

(Soares, 106)

Se o drama maior de Pessoa reside justamente na consciência do vazio do sujeito enquanto sujeito real, a resposta imaginária (e momentânea, como sempre) a esse vazio, em consonância com o movimento contínuo de exteriorização, foi imaginar-se cientista (analista!); mas um cientista liberto da gravidade da ciência, um cientista-criança, que, andando em círculos, puxasse um trenzinho de corda por um trilho, e assim descesse, entretido, pela espiral de si mesmo: “…a ciência não é senão um jogo de crianças no crepúsculo, um querer apanhar sombras de aves e parar som- bras de ervas ao vento” (165). Aos olhos de Pessoa, fazer ciência é, por- tanto, e a exemplo do que representa o próprio fazer poético para si, jogar com o impossível.

O menino-Pessoa, “cientista de depois de amanhã”, ou poeta-cien- tista, ao formular suas especulações metafísicas, preconiza, com “precisão” e “imparcialidade”, a “ciência do futuro”: “Os sonhadores atuais são talvez os grandes precursores da ciência final do futuro” (107).

Com “Análise”, por decorrência já do título-anúncio, aquele que nunca pretendeu ser senão um sonhador, realiza, com suas ferramentas oníricas, uma rigorosa investigação íntima, à luz da qual o próprio poema constitui-se como “um instrumento de precisão, para uso autoanalítico, com aços e bronzes só do pensamento”. Com semelhante propósito, afir- ma Bernardo Soares, “A arte é uma ciência” (245):

O homem de ciência reconhece que a única realidade para si é ele próprio, e o único mundo real o mundo como a sua sen- sação lho dá. Por isso, em lugar de seguir o falso caminho de procurar ajustar as suas sensações às dos outros, fazendo ciên- cia objetiva, procura, antes, conhecer perfeitamente o seu mun- do, e a sua personalidade. Nada mais objetivo do que os seus sonhos. Nada mais seu do que a sua consciência de si. Sobre es- sas duas realidades requinta ele a sua ciência. É muito diferente já da ciência dos antigos científicos, que, longe de buscarem as leis da sua própria personalidade e a organização dos seus sonhos, procuravam as leis do “exterior” e a organização daqui- lo a que chamavam “Natureza”.

(485)

O objeto analisado, a própria identidade, antes uma membrana vazia es- condida num corpo, quando exteriorizada e disposta sobre a bancada do cientista, entre a lâmina de vidro da linguagem e a lente sintática do mi- croscópio, torna-se um eu visível, célula divisível, matéria de análise. A “Análise”, ela própria, constitui, assim (para além de uma confissão ena- morada, tal qual, à primeira vista, parece representar), o momento privile- giado pelo qual, ao entreolhar-se, o cientista frio, poeta da perfeição desumana, destaca a consciência de uma consciência, lançando-a para a at- mosfera modificada do tubo de ensaio da linguagem. Espaço de desperso- nalização em que o imaginário funda realidades, entre as quais um eu que não é senão um eu lírico (ou fingido ) – um eu que, afinal, só pode ser (e se olhar) na corrente elétrica da linguagem.