Astrologia e Manuscritos Medievais Judaicos: Interfaces

 
Analisam-se os manuscritos astrológicos judaicos da Idade Média, rica fonte para o melhor entendimento da cultura medieval e da história da ciência. Em um primeiro momento, será feita a contextualização da astrologia na Europa cristã, para, em seguida, entender a relação dos judeus da Idade Média com a interpretação das supostas mensagens dos astros. O resultado do interesse pela astrologia será a elaboração de textos variados sobre o tema, muitos deles desconhecidos até o presente. Antes da conclusão, serão examinados três guias astrológicos: o Ms. Laud Or. 282 e Ms. Laud Or. 31 0, ambos da Bodleian Library, e El libro conplido en los iudizios de las estrellas, de Abenragel. Os conhecimentos aqui sistematizados contribuem para o melhor entendimento dos Estudos Judaicos e Medievais, abrindo novas perspectivas de pesquisa para a Crítica Textual, a Filologia Românica e a História, entre outras áreas do saber.

AGÁLIA no 101 / 1º Semestre (2010): 35-55 / ISSN 1130-3557 / URL: http://www.agalia.net

1. Introdução

O interesse em desvendar as mensagens dos astros está presente em diversos manuscritos (mss.) medievais. Esses textos astrológicos são compostos por ferramentas e princípios da astrologia, quadros e textos re- lativos à influência e à natureza dos planetas, assim como horóscopos, isto é, mapas dos céus que fornecem respostas a problemas dos mais variados tipos. Ao contrário da astrologia atual, a medieval permeava vários níveis da sociedade, fazendo parte da visão de mundo dos indivíduos: previsões, tipos de personalidade, destinos individuais, amor, poder, negócios, cos- mologia, alquimia, agricultura e medicina sofreriam a influência dos astros (Page, 2002).

Há muitas obras que tratam da astrologia medieval no Ocidente e tantas outras que analisam mss. medievais judaicos sobre os mais diversos assuntos —filosofia, cabala, medicina, astrologia, geografia— como a tão completa Sirat (2002). Mas as informações sobre mss. medievais judaicos que tratam especificamente de astrologia encontram-se pulverizadas em textos variados, dificultando uma perspectiva coesa e clara do objeto em questão. Ademais, as análises encontradas sobre astrologia medieval são, em geral, sobre a cristã ou a árabe, porque há, efetivamente, poucos trabalhos originais escritos por judeus. Romano (1992), porém, ao analisar 30 tra- balhos astrológicos/astronômicos de grande importância científica, revela que, em 74% deles, judeus tiveram papel central em sua elaboração, seja traduzindo, seja transcrevendo, o que estimulou o início da pesquisa aqui exposta. É relevante, então, para as várias subáreas das ciências humanas e sociais lançar um olhar que dê exclusividade ao problema.

Para o bom entendimento da discussão, este texto foi dividido em três partes, arrematadas por considerações finais. Na primeira, apresenta-se a astrologia na Europa cristã medieval, com a inserção dos autores das obras astrológicas judaicas em um contexto maior. Na segunda, tenta-se entender a relação entre judeus europeus e astrologia medieval. Já na ter- ceira parte, apresentam-se três extensos mss. medievais judaicos que tra- tam especificamente de astrologia: El libro conplido en los iudizios de las strellas [ Libro conplido ] , com versões em bibliotecas variadas, De magia (ou Manuscrito Laud Or. 282 [ Ms. 282]) e o parcialmente editado por Ge- rold Hilty, em 2005, o Ms. Laud Or. 310 [ Ms. 310]), os dois últimos da Bodleian Library, em Oxford, Inglaterra.

Decidiu-se utilizar o termo “judaicos” para os mss. de modo bas- tante amplo: a questão de autoria na Idade Média é bastante problemáti- ca e não se tentará esclarecê-la no momento. Assim, “mss. judaicos” aqui são aqueles copiados, redigidos, traduzidos e/ ou compilados por um ju- deu. Tampouco há a preocupação em se fazer qualquer julgamento de valor em relação à (pseudo)cientificidade da astrologia. Entendida co- mo uma ciência pela maioria dos homens cultos da Europa medieval, só passou a ser contestada cientificamente a partir do século XVII, com a tomada de conhecimento das ideias de Isaac Newton1 . Ciência, arte ou farsa, faz parte da evolução da ciência tanto ocidental quanto oriental, sendo um ponto de interseção entre religião e ciência, cultura erudita e popular, literatura e cotidiano (adaptado de Kieckhefer, 1992).

Esta pesquisa bibliográfica permitirá a cobertura de dados que se encontram, como já dito, muito dispersos. As informações das fontes se- cundárias às quais se teve acesso foram cotejadas cuidadosamente na ten- tativa de se diagnosticar e evitar possíveis incoerências. A pesquisa documental servirá apenas de apoio à bibliográfica e se restringirá à análise direta dos seguintes materiais: o microfilme e a fotocópia do De magia e a fotocópia do Ms. 310, adquiridos na Bodleian Library, a edição do De magia de Duchowny (2007) e a edição do El libro conplido de Hilty (1954 e 2005). Estes materiais carecem de mais tratamento analítico e/ ou crítico. Espera-se, assim, que o conhecimento da astrologia medieval judaica não se limite mais aos poucos escritos já conhecidos, e que novos estudos sur- jam para melhor se entender a sociedade medieval e a história da ciência.

2. Astrologia e Europa cristã

Na Idade Média, astrologia e astronomia chegam da Grécia ao Oci- dente de forma fragmentada, através de textos tecnicamente pouco refina- dos e sempre condenados pela Igreja católica, conforme Marshall (2006), e também pelo Judaísmo tradicional, como se verá na próxima seção. No Oriente, a astrologia grega foi transmitida ao mundo árabe, chegando, através dele, à Península Ibérica, por volta do final do século X. Autores como Tester (1987) afirmam que a astrologia praticamente não existia an- tes do século XII na Europa Ocidental, tendo como base o número reduzi- do de mss. que chegaram até o presente sobre o tema. Mas o que aconteceu, de fato, é que, a partir do século XII, o interesse pela astrologia, já bem instalada nas crenças e nos costumes ocidentais e, muito provável, sempre presente na tradição oral, cria uma demanda por textos astrológi- cos. A astrologia, então, adquire grande ímpeto com a redescoberta e a tra- dução do grego para o latim de textos preservados pelos árabes e de textos árabes relacionados a ela, e também à astronomia e à filosofia. Ao final desse século, os principais textos astrológicos da Antiguidade estavam dis- poníveis na Europa. Segundo Page (p. 9, itálicos nossos), “Scholars from across Europe travelled to centers in Spain, Sicily and the Middle East where —often in collaboration with Jews— they translated works from Arabic into Latin and returned home in possession of a body of scientific knowledge which included astrological, alchemical and magical texts”.

Duas figuras da Antiguidade grega dominaram a Ciência, ao longo de toda a Idade Média: Aristóteles e Platão. A cosmologia de Aristóteles, menos ou mais adaptada daquela de Platão, resumia-se na Terra, fixa e estática, inseri- da no centro do universo e o mundo sublunar, formado pelos quatro elemen- tos —água, terra, fogo e ar—, sujeitos às forças de geração e decadência. Ao redor, as esferas celestes giravam em um movimento circular perfeito.

Na cultura medieval cristã, a classificação do conhecimento huma- no evidencia a importância dada ao entendimento do céu e de seus com- ponentes. O conhecimento medieval estava organizado em dois grandes grupos de disciplinas, agrupadas no Trivium (gramática, retórica e dialéctica) e no Quadrivium (aritmética, música, geometria e astronomia. Esta última, segundo Carvalho [p. 21], “com suas profundas infiltrações as- trológicas”). Em um testemunho de 1504, D. Pedro de Meneses profere, na abertura das aulas do Estudo Geral em Lisboa2, a Oração da Sapiência. Nela, o autor faz referência à astrologia, uma das disciplinas minis- tradas no Estudo Geral, na época, como a arte que “previne com êxito seguro o futuro próspero ou infeliz, providência esta com que se podem facilmente evitar os males patentes, e esperar os bens com mais segu- rança” (Carvalho 132). Um adágio, que corria na afamada Escola de Me- dicina de Bolonha, no século XIII, também é uma pista para o papel da astrologia na sociedade medieval: “Um doutorado sem astrologia é co- mo um olho que não pode ver” (Hutin 107). Em muitas cortes da Europa Medieval, os governantes recebiam aconselhamento astrológico de médicos e membros da corte e, conforme Marshall (2006), por volta do século XIV, todas as autoridades (papas, bispos, reis, príncipes) tinham seus astrólogos. O uso frequente da astrologia pode ser evidenciado por vários manuscritos medievais que chegaram até os dias de hoje. Ela era de grande utilidade para a marcação do tempo, já que os almanaques, os calendários e as ferramentas disponíveis —relógios de sol, ampulhetas, velas, clepsidras— apresentavam limitações.

Segundo Page (2002), é difícil saber o quão abrangente foi a dis- seminação das ideias astrológicas. O hábito usual de leitura em voz alta teria aumentado a transmissão das crenças e práticas astrológicas, mas o mais provável é que a prática da medicina astrológica tenha sido a forma mais comum de exposição a essa área do conhecimento. Na medicina as- trológica, o corpo humano reflete o universo. Assim, se o microcosmo do corpo do homem estava relacionado com o macrocosmo, a ideia da influência dos astros sobre os humanos seria um passo muito natural: temperamentos e desordens corporais estavam associados a planetas e signos zodiacais individuais, o que poderia ser verificado pelos astrólo- gos. As técnicas astrológicas também permitiam que os médicos des- cobrissem o melhor momento para a administração de remédios, sangramentos, cirurgias e o próprio desenvolvimento das doenças (Ed- son e Savage-Smith, 2004).

A astrologia era dividida em duas partes principais: a mundana (também chamada de geral ou natural) e a judicial. A primeira dizia res- peito às influências celestes sobre os fenômenos naturais, tais como o tempo e a previsão de acontecimentos em geral. A segunda preocupava-se com a vida do indivíduo e o momento certo para realizar alguma ação, sendo vista com suspeita pela Igreja católica, pois ameaçaria o conceito de livre arbítrio da divina providência de Deus. Uma resposta comum a essa crítica por parte dos astrólogos era a de que a astrologia preparava os seres humanos para eventuais desastres, dimimuindo o seu impacto. Ademais, apenas os corpos, paixões e multidões eram regidos pelas es- trelas, e não a razão, as almas e o livre arbítrio dos indivíduos. Apesar de os autores utilizarem os termos “astrologia” e “astrono- mia” indistintamente ao longo de toda a Idade Média, a diferença entre eles era definida (Santos, 2001; Marshall, 2006). Esta não é a opinião de Tester (1987) e tampouco de Costa (2002): para o último, poucos perce- biam a diferença e Hugo de São Vítor (c. 1096-1141) seria uma das ex- ceções, conforme se vê em obra datada de 1127:

A astronomia e a astrologia se diferenciam pelo fato de a astronomia ter derivado o seu nome da lei dos astros, a astrologia do discurso sobre os astros. De fato, nomía significa lei e logos discurso. E assim, a astronomia é a ciência que discute a lei dos astros e a revolução do céu, investigando as regiões, as órbitas, os movimentos, o raiar e pôr-se das estrelas e as razões do nome de cada uma. A astrologia, por sua vez, considera os astros em seu influxo sobre o nascimento ou a morte ou qualquer outro evento, influxo que é em parte natural e em parte supersticioso. Tal influxo é natural sobre a complexão dos corpos, os quais variam de acordo com o ritmo dos corpos superiores, como é o caso da saúde, doença, tempestade, estiagem, fertilidade e esterilidade; mas esse influxo é supersticioso com relação às coisas contingentes ou que dependem do livre-arbítrio. (Hugo de São Vítor. Didascálicon. Da arte de ler, Livro II, cap. 10, apud Costa (491); itálicos no original.)

Os judeus, integrantes da sociedade europeia medieval e sob o jugo da força dominante da Igreja católica, também se interessam pela astrologia, utilizando-a como ferramenta para o dia a dia (medicina) e para interpre- tações subjetivas (filosofia). Colaborarão, também, para a vasta dissemi- nação das ideias astrológicas, sugerida pela popularidade dos mss. que as comportavam e que circularam na Idade Média.

3. Astrologia e judeus

No século XII, momento do ápice do interesse pela astrologia, já presente no século anterior, os judeus de terras cristãs viviam em dois am- bientes diferentes (Sirat, 2002): norte da Europa, com uma forte tradição oral (são os judeus asquenazitas) e Europa do sul (Provença, Bizâncio e penínsulas ibérica e itálica), onde começaram o estudo das ciências em ge- ral. Vários astrólogos judeus serviram a reis e papas nas cortes cristãs me- dievais: Judah b. Moses ha-Kohen na corte de Afonso X de Castela (1254-1284), Jacob Alcorsono e Crescas de Vivers nas cortes de Pedro IV (1336-1387) e de Joan I (1387-1389) de Aragão, Abraham Zacuto (1450- 1510) na corte de Manuel I de Portugal (de 1494 até 1497), Jacob b. Ema- nuel Provinciale (Bonet de Lattes), médico e astrólogo dos papas Alexan- dre VI e Leo X. Ainda no reinado de Afonso X, o astrólogo Isaac ben Said estabeleceu as tábuas astronômicas denominadas Tábuas afonsinas3.

Mas, houve uma astrologia especificamente judaica? Sirat (1990) responde negativamente à pergunta4. Como os judeus estudiosos partici- pavam do progresso de várias ciências em geral — matemática, astrono- mia, medicina —, contribuíram, consequentemente, para o progresso da astrologia. Para a autora (Sirat 97),

Jewish astrologers adopted astrology without modifying any basic part ofthe system because oftheir religious ideas. Within the astro- logical tradition they chose what best suited their intentions and they sometimes made a personal application ofthe accepted prin- ciples; what was Jewish was the use ofastrology in systems ofJe- wish philosophyand the use ofastrological arguments concerning certain questions; astrologyitselfremained a universal science.

É fato que há poucos manuscritos medievais sobre astrologia escrito por judeus e daí resulta o questionamento anterior. Mas entender o papel dos judeus na sociedade medieval é importante porque vários tratados astroló- gicos escritos em árabe, principalmente nos séculos IX e XI, foram traduzi- dos por judeus para o hebraico e para as línguas vernáculas da Europa. Ademais, ao longo de toda a Idade Média, a astrologia foi praticada pelos judeus, tanto profissional quanto cientificamente, podendo ser citados vá- rios estudiosos e filósofos versados em astrologia: S. Gaom, S. Donnolo, S. b. J. ha-Nagib, S. ibn Gabirol, I. Daud, Levi ben Gershon (Gersônides) (Encyclopaedia Judaica [ EJ] , 1971, v. 2).

Ainda de acordo com a EJ (1971, v. 3, 787-807), a astrologia não é mencionada explicitamente na Bíblia, mas os profetas tinham consciência das práticas dos “observadores de estrelas”. Vários textos judaicos criticam a crença dos judeus na astrologia, afirmando que se trata de uma ilusão (Os Oráculos sibilinos, o primeiro Livro de Enoch, o Livro dos Jubileus).

Maimônides, autoridade rabínica de enorme prestígio entre os ju- deus, também rejeitava a astrologia, referindo-se às crenças astrológicas como superstições vãs e indignas de serem chamadas de ciência, mesmo que o Talmud5 e os Textos Midráshicos6 indiquem a influência das estre- las sobre os seres humanos. Apesar da autoridade de Maimônides, suas palavras não influenciaram todos os escritores subsequentes a ele. Além deste importante pensador, outros se posicionaram em relação à astrolo- gia, principalmente através de comentários de obras já existentes: Abraham bar Hiyya ( circa 1065-1136), que demonstrava atitude positiva em relação à astrologia, Judah Halevi ( circa 1075-1141), ambíguo em relação a ela e Hasdai ben Judah Cresca ( circa 1340-1410) e seu discípulo Joseph Albo ( circa 1380-1444), com atitude cética. Outro nome a ser citado é o de Abraham ibn Ezra (1089-1164), reputado estudioso de astro- logia em sua época, que teve a maioria de seus textos traduzidos para o latim no final do século XIII. Seu papel foi importante para a difusão e aceitação da astrologia entre os pensadores judeus e não-judeus, não ape- nas como uma ciência legítima, mas também como uma chave importan- te para os segredos do cosmos (Langermann, 1996).

Apesar de muitas vezes condenada, afirmava-se que a astrolo- gia tinha origem celestial, tendo sido revelada à humanidade por an- jos rebeldes. A maioria dos sábios talmúdicos acreditava no papel decisivo dos corpos celestiais na determinação dos eventos huma- nos, no mundo sublunar. Em vários pontos do Talmud, afirma-se que todo ser humano tem um corpo celestial (mazzal), em especial uma estrela-guia da concepção e do nascimento (Shabat, 53b e Bava Kamma 2b): “Not only human beings are influenced by the stars; but there is not a blade of grass that has not its star in the heavens to strike it and say to it: grow!” (Nedarim 39b e Bava Metzia 30b apud EJ (1971, v. 3, 789).

Outras obras e pensadores também dão legitimidade a esse saber tradicionalmente condenado. Rava (ou Abba ben Joseph bar Hama, circa 280-352), por exemplo, afirmava que “A vida, as crianças e a subsistência – estas coisas não dependem do mérito, mas das estrelas” (Mo ́ed Katan 28a, cf. EJ, 1971, v. 3, 790). O antigo texto Sefer Yetsirah ( Livro da Formação ) é um tratado rabínico, escrito entre os séculos II e VI da Era Comum, de autor desconhecido, sobre filosofia cabalística. Nele, é mencionada a divisão do zodíaco em doze constelações, correspondentes aos signos zodiacais, aos doze meses do ano e às doze consoantes simples do hebraico. Os signos eram designados, também, de acordo com certas partes do corpo e as doze constelações representariam as doze tribos judaicas. Contém várias passagens astrológicas que tratam da relação de sete consoantes hebraicas com sete planetas e os sete dias da semana. Podem ser citados também o Sefer Razi ́el ha-Malakh ( Livro do anjo Raziel) e o Zohar (Livro do Esplendor) , este último um conjunto de livros de autoria controversa, encontrado pela primeira vez no século XIII, na atual Espanha. É o texto principal da literatura cabalística, composto por várias seções que incluem pequenas afirmações midráshicas, longas homilias e discussões sobre assuntos variados. Mesmo empregando imagens e terminologia astrológica, retira a relevância da astrologia, entendendo as crenças astrológicas como sem importância ( EJ, 1971, v. 2).

Conforme Marshall (2006), a astrologia esotérica judaica associa cada planeta a uma das dez Sefirot (atributos divinos), cujas relações são representadas na Àrvore da Vida. Pode-se encontrar uma descrição detalhada da influência dos planetas e das constelações em obras judaicas como no Tsedah la Derek de Menahem ibn Zerah e no ‘Abbi‘ah Hidot de Abraham Hamawi. No entanto, conforme a EJ (1971, v. 16, 689), entende-se que

O judeu justo está acima da sina (constelação ou planeta) e não precisa temer nenhum destino ruim. Para legitimar esse ensinamento, o trecho “não se desanime com os signos dos céus; porque o descrente se enfraquece diante deles” (Jer. x. 2) é geralmente citado, sendo contrário à religião judaica consultar as predições dos astrólogos ou de depender deles.
( Deuteronômio , xviii, 11)

A crença de sábios como R. Akiva (ou Akiva ben Joseph, circa 17-137) e Mar Samuel (ou Samuel de Nehardea circa 177-257), de que os judeus seriam imunes às influências planetárias pode justificar o fato de o zodíaco não ser mencionado no Talmud ( EJ, 1971, v. 16, 1491). Como se pode ver, os sábios não tinham uma opinião consensual e tem-se aqui um complexo problema teológico e religioso que ultrapassa o escopo deste artigo7.

4. Manuscritos medievais judaicos sobre astrologia

Segundo Sirat (2002), há pelo menos 40 mil manuscritos medievais escritos em caracteres hebraicos, em línguas como o aramaico, o hebraico, o árabe, o ídiche, e as vernáculas europeias. Muito da produção judaica literária e científica está em língua árabe, porém em caracteres hebraicos. Apesar das perseguições e expulsões contínuas dos países europeus, principalmente a partir do século XIII, os principais tradutores das obras árabes sobre astrologia (e também astronomia) eram judeus, colaborando para o estudo das ciências em geral. Também, em colaboração com cristãos, compilaram numerosas tábuas astronômicas.

Os estudiosos medievais dispunham de teorias e convenções relativamente bem definidas a respeito da tradução de textos eruditos ou científicos. Nos três grupos religiosos discutiam-se os méritos de um estilo de tradução literal versus os de uma tradução mais livre. Este intercâmbio cultural exigia um elevado nível de interação social que na prática se consubstanciou em grupos inter-étnicos de tradutores que vertiam textos árabes para o latim (séc. XII) ou para o castelhano (séc. XIII). No século XII, os grupos consistiam em dois homens: frequentemente um judeu, que lia o original em árabe e o traduzia em voz alta, palavra por palavra, para a língua vernácula e o seu parceiro que, em seguida, escrevia a tradução de cada palavra em latim.

A seguir, serão apresentados, sem o objetivo de alcançar a exausti- vidade, três guias astrológicos, suas características gerais e as edições conhecidas. Espera-se que estes exemplos sirvam para ilustrar a comple- xidade e a riqueza dos mss. astrológicos judaicos da Idade Média para diversas áreas do saber.

4.1. De Magia

O Ms. 282 é composto de 416 fólios cujo original se encontra na Bodleian Library. Suas sete partes tratam de subtemas da astrologia: os corpos celestes, a influência destes sobre os seres humanos, a escolha do momento para a realização de certas ações, etc, de acordo com o trecho inicial do próprio original (fólio 1 v, linha 20 até 2r, linha 31).

Conforme o detalhado exame de Duchowny (2007), apesar de a língua ser o português arcaico da primeira metade do século XV, os carac- teres utilizados são os hebraicos semicursivos também do século XV. O uso de um alfabeto para representar uma língua diferente é chamado de “aljamia” (Duchowny, 2007). A mesma autora realizou a edição paleográfica dos 84 fólios iniciais do códice outrora inédito, tendo feito a sua trans- crição para os caracteres latinos. Ela passa a chamá-lo de De Magia devido a uma nota marginal do século XVII do próprio manuscrito. A seção que se inicia no fólio 85 continua inédita e foi redigida por outro punho.

Não há certeza sobre a autoria do De Magia: mesmo com a citação do nome de Juan Gil de Burgos como copista em seu colofão8, não foram encontrados dados suficientes que comprovassem tal afirmação. De acordo com Sá (1960), o De Magia seria uma tradução de uma cópia do Lybro de Magyka, este último possivelmente em catalão, do qual se desconhece o paradeiro. Para Silva (1924: 47), não pode restar dúvida, pelo que se tem exposto, que o “grande livro de astronomia”, tantas vezes citado pelo rei D. Joan I, era o De Magia e foi escrito por João Gil de Castiello, fiel da escrivania do rei de Aragão, no meado do século XIV. Esta não é a opinião de González Llubera (269): “Juan Gil’s participation does not appear to have gone beyond the exercise of his professional skill as a copyst”, concluindo que, o De Magia “(a) is not the a[s]trological compilation commissioned by Peter the Ceremonius, but does represent the Catalan one translated by Master Alfonso in 1351-2; and (b) that its attribution to Juan Gil probably arose from the mention ofthe latter in the colophon ofthe codex copied by him”.

Segundo Hilty (1982: 262), em relação ao De Magia, “da obra atribuída a João Gil não existe tradução latina e dos pouquíssimos manuscritos conservados deve deduzir-se que a obra estava pouco divulgada.” Entende-se aqui como “manuscritos conservados” o Ms. 282 da Bodleian Library e sua tradução em castelhano do século XV, o Ms. 5-2-32, cuja terceira parte se encontra na Biblioteca Colombina9.

Se o De Magia é uma tradução que tem como texto de origem um texto em catalão em caracteres latinos, o tradutor só poderia ser pelo menos bilingue, que dominava tanto o hebraico quanto o português. No entanto, a tradução poderia ter sido feita também por duas pessoas: um traduzia em voz alta do catalão para o português, enquanto o outro, certamente um judeu, copiava em caracteres hebraicos o que ouvia em português (Hilty xxxviii).

Apesar da análise e da edição de Duchowny (2007) e da existência de alguns outros trabalhos, o texto, de inegavél valor para a filologia portuguesa e para o melhor entendimento dos sistemas aljamiados, demanda a edição do segundo punho e de estudos de seu conteúdo e língua.

4.2. El libro conplido en los iudizios de las estrellas

El libro conplido en los iudizios de las estrellas é a tradução do tratado enciclopédico de astrologia elaborado na primeira metade do século XI pe- lo astrólogo árabe Abenragel (ou Ibn Abi-l-Riyal). Esta tradução, datada de 1254, foi feita por Yehuda b. Moseh ha-Kohen e outros tradutores do escritório afonsino de traduções, a mando do rei Afonso X (Ordóñez de Santiago, 2006; Vicente García, 2002). A cópia da tradução em castelhano da Biblioteca Nacional de Madrid ( Ms. 3065 ), datada do século XIII, foi editada por Gerold Hilty em 1954 (ver Hilty, 1954). É composta de cinco partes apenas, faltando as três últimas, tendo 230 fólios, letra gótica e ornamentação comuns a outros textos afonsinos, conforme descrição de Domínguez Bordona (1931). Em 2005, G. Hilty edita as partes faltantes do Ms. 3065 (ver Hilty, 2005), baseando-se nos seguintes manuscritos: 253 da Biblioteca de Santa Cruz de Valladolid, Laud Or. 310 da Bodleian Library, B 338 do Arquivo Capitular da Santa Igreja da Catedral de Segóvia e o Barb. Lat. 4363 da Biblioteca Apostólica Vaticana. Há outras cópias do ms., inclusive em latim, o que aponta para sua ampla difusão, principal- mente no Renascimento.

Hilty (1982), ao analisar notas interlineares encontradas no Livro cunprido, fruto de uma correção do texto feita pelo “emendador”, tira algumas conclusões que poderiam colaborar para o melhor entendimento das questões relacionadas à autoria dos mss. Apesar de no prólogo do Libro cunprido haver referência a apenas um tradutor, Yehuda b. Moshe ha-Cohen, a tradução foi feita por pelo menos dois tradutores, utilizando-se uma técnica comum da época do Rei Afonso, que reunia um tradutor judeu e outro cristão. O judeu, conhecedor do árabe, faria uma tradução oral do texto, e o cotradutor cristão a anotava por escrito. Ademais, o co-tradutor teria o papel de discutir o conteúdo do texto com o tradutor judeu, devendo ser versados no assunto da obra traduzida. Em seguida, o trabalho dos tradutores seria controlado e corrigido por um “emendandor”, que às vezes discutiria os problemas com os tradutores. A revisão era primeiramente de ordem técnico-as- tronômica e só em segundo lugar linguístico-estilística.

Dos três textos expostos, o Libro conplido é o que recebeu mais estu- dos e, provavelmente, o que teve maior repercussão na Idade Média. Estan- do em caracteres latinos, teria, evidentemente, um público muito mais vasto do que os demais guias aljamiados.

4.3. Ms. Laud Or. 310

O Manuscrito Laud Oriental 310, da Bodleian Library, em Oxford, é um guia astrológico, aljamiado, composto de 248 fólios. A língua é incontestavelmente o português do início do século XV. Para Hilty (1954), é um códice de interesse para elucidações referentes ao Libro conplido porque seria uma versão em português deste último. Teria sido escrito em 1410-1411, abarcando as partes 4 a 8. Assim, através dele, poderia se conhecer as três últimas partes não conservadas no original. A tradução é feita palavra por palavra e aproveita, em geral, as mesmas raízes, substituindo apenas palavras castelhanas que não existem em português.

Duchowny (2007) apresenta no Apêndice a transcrição paleográfi- ca de oito fólios (1 r e v, 2r, 182v, 240r e v, 241 r e v), trazendo informações esclarecedoras. Em 1 r (p. 296), a obra se inicia da seguinte forma, fornecendo o nome de seu “compositor” e o seu conteúdo geral:

en nome de deus amen ·· aqui começa acuarta partida do libro conprido en o juizos das estrelas oque conpos ali n g rajal outro e aqui conpesa as nacenças e conteen se en esta parte das nacenças acriança e e elees e alcodcode e os juizos das cinc casas primeyra que son des nprimeyra ata aquinta […]

Em seguida, ao final do fólio 182v (p. 299), tem-se um colofão:

aqui se acaba asetima parteda que e das eleçoes e adeus graças ∙∙tam venišlam ševah̩ lebor’e ‘olam ‘al yad yośefbar gedalia franco šemerehu ŝuro yom h̩amiši arv‘aa yamim lehodeš marheswan šenat hamešet ’alafim ume’a vešiv‘im uštaim šanim layeŝira brekh deyahev hel’a le‘avde bar ’amite barukh hašem le‘olam ’amen ’amen, barukh noten laya‘efkoah̩ uleen ’onim ‘oŝma yarbe zeman ’amen ’amen ’amen śela śela śela.

O trecho em hebraico foi traduzido em nota de rodapé (nota 1081, p. 299) da seguinte forma:

Terminado e completado graças ao criador do mundo pela mão de Yosef bar Gedalia Franco, que Deus o guarde. Quin- ta-feira, dia 4 do mês de marheswan, ano cinco mil cento e setenta e dois da criação. Bendito Deus para sempre amém, amém. Bendito o que dá força ao cansado e ao que não tem energia, vigor. Que seus dias aumentem, amém, amém.

Apresentam-se, aqui, pelo menos três informações relevantes: (i) trata-se da sétima parte do códice em questão; (ii) o ano da finalização da escrita é 1412. “Marhesvan” que dizer, literalmente, “oitavo mês” e equivale ao segundo mês do calendário civil e oitavo mês do ano eclesiástico do calendá- rio judaico; (iii) Yośef bar Gedalia Franco teria “terminado e completado” o manuscrito.

Finalmente, no fólio 241 v (p. 303), tem-se outro colofão:

aqui se cunpre o libro cunprido dos en os juizos das estrelas o que conpos abulrocen ali filho de abn rageal e deus seja loubado e agradecido amen ∙∙ tam venišlam ševah̩ lebor’e ‘olam ‘al yad yośef bar gedalia franco šemerehu ŝuro yom šiši šene yamim miroš h̩o deš ’elul šenat šiv‘im ve’eh̩at leprat, brek deyahev h̩el’a le‘avde bar ’amite ’amen ’amen.

A autora traduz o trecho em hebraico (nota de rodapé 1127, p. 303) como: “Terminado e completado graças ao Criador do mundo pela mão de Yosef bar Gedalia Franco, que Deus o guarde. Sexta-feira, dia dois do mês de elul (agosto) ano cinco mil cento e setenta e um (1411); Bendito o que dá força a seu servo, o filho da verdade, amém, amém.” Assim, de acordo com este segundo colofão, o ms. teria sido finalizado em agosto de 1411.

Hilty (1982) afirma que o Ms. 310 seria uma versão portuguesa que derivaria da versão castelhana por ele editada. Esta tradução teria sido feita em 1411 e o tradutor “tinha diante de si uma versão espanhola do Livro cunplido escrita em caracteres latinos, que traduziu para o português direc- tamente e por escrito” (Hilty 249) 10.

Gedalyah era um nome conhecido e respeitado entre os judeus ibéricos. Maimônides tinha um sobrinho chamado Gedaliah ben R. Joseph ben Don David ben Joseph Jachia, famoso jurista, historiador, filósofo e predicador entre as comunidades judaicas ibéricas. Há também R. Gedaliah ben Jacia, originado de Lisboa, famoso jurista e médico, que viveu em Constantinopla no século XV (Levi, 1995).

G. Hilty (2005) já transcreveu a sétima parte do Ms. 310 (fólios 134r a 182v), mas há necessidade de uma edição completa o mais breve possível: esta abriria novas janelas que permitiriam o melhor entendimento da filologia portuguesa. Sua edição também complementaria o que já se sabe sobre o Libro conplido.

5. Conclusão

Os trabalhos originais sobre astrologia escritos por judeus, mesmo que poucos, foram de grande importância para a Europa escolástica e para o início da Renascença. Estas obras forneceram uma ligação entre as tra- duções árabes, comentários e compilações de muitos textos importantes, principalmente através de traduções e comentários em línguas vernáculas ou em hebraico, em caracteres latinos ou hebraicos. O resultado da troca de ideias, em geral, incluindo as astrológicas, entre judeus, cristãos e ára- bes favoreceu o desenvolvimento da ciência ocidental e o estímulo ao desenvolvimento das línguas vernáculas europeias como veículos de criação e divulgação científica, em detrimento do latim.

O conhecimento da astrologia medieval judaica ainda é limitado a uma parte muito pequena de vários escritos sobre o assunto. Muito mate- rial continua ainda inédito e mesmo o que já foi descoberto — incluindo o aqui apresentado — precisa ser melhor estudado.