Um Paradoxo do Tempo Pós-Moderno

Paradoxo pode considerar-se ser uma afirmação contraditória que desafia a lógica e o senso comum, como pode ser um recurso estilístico em que uma afirmação aparentemente contraditória se revela como verdadeira ou também uma situação que, porque vai contra a lógica e o senso comum nos pode conduzir ao absurdo.

Opinião contrária ao “sentir comum” é ainda, igualmente, um dos significados do termo paradoxo. Mas, destes e muitos outros significados que podemos encontrar, um se reveste de particular interesse para os nossos intentos: consiste, ele, na sua consideração como “coisa incrível”, como “coi- sa espantosa”, isto é, como algo que causa espanto, como algo em que não se consegue acreditar ou em que só muito dificilmente se acredita.

Vivemos hoje tempos sombrios, alternada e às vezes simultanea- mente fascinados e resignados com o que, tantas vezes de forma incons- ciente, é o resultado da nossa própria criação. E dizemos de forma inconsciente porque sabemos bem como, ao longo do tempo, quantas ve- zes circunscrevemos o pensamento a uma realidade instrumental, “vendo” o mundo de uma forma utilitária, assim ignorando o verdadeiro alcance da nossa acção e da nossa descoberta — daí a não consideração dos fins co- mo tendo uma finalidade por si mesma mas como um meio para outros fins, numa brutal redução da sua racionalidade à instrumentalização do mundo, em que, o que mais ou só importa, é a utilidade do que se produz ou cria, incluindo o próprio criador (o Homem).

O mundo construído pelas mãos humanas foi transformando-se, primeiro progressiva e hoje vertiginosamente, centrado nesta racionalida- de instrumental, elege como importante tudo, menos o que mais importa- ria, o verdadeiro significado da dimensão construtora e criadora do humano em prol de si própria, num círculo fechado e vicioso.

Como escreve Hannah Arendt (1961: 269), “ao mesmo tempo, passamos a povoar o espaço em volta da terra com estrelas feitas pelo ho- mem, criando, por assim dizer, novos corpos celestes sob a forma de satéli- tes” — dos quais depois nos afastamos; ou seja, o homem cria, destrói mais ou menos “porque sim”, tornando-se numa espécie de “fabricador”, que depois assume a condição de um “motor imóvel”, porque na verdade o papel essencial da sua acção parece desaparecer. Transformado num homo faber, o operário do mundo que habita, que habitamos, fica assim reduzido a algo, que Jean-François Lyotard chamou o inumano , porque “arrastados” num desenvolvimento onde o estranho e a utopia comparecem. Aliás, a este desenvolvimento Lyotard (1988: 79) já não ousa chamar “progresso”, dado que aí as alternativas já não existem de todo, a não ser a consideração do outro, mas de um outro também ele inumano.

 

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Não nos alongaremos mais, contudo, sobre o olhar de Lyotard a este propósito, mesmo porque, para além de todas as encruzilhadas inelutáveis a que toda a reflexão está sujeita, é nosso intento encontrar mais quadros de imagens a partir dos quais a penumbra do silêncio a que tantas questões não escapam, propondo-nos mesmo assim mais alguns fragmentos resultantes do nosso olhar os outros, o Outro, o humano e/ou o inumano , colocando-nos sempre entre a paixão, a razão e o jogo, a física e a metafísica, respirando a dádiva da vida e de nela simplesmente reconhecer que mesmo que a firmeza do cogito cartesiano permitisse noutros tempos, outros ventos, hoje, neste nosso século XXI, o homem passou a estar muito menos disponível para olhar horizontes onde os perfis se traçam para anunciar alguma coisa.

O brilho da chamada “civilização”, do desenvolvimento, do que se designa como “progresso”, deu lugar a artificiais clarões de um Universo, onde o Azul é substituído ou pelo cinzento ou então por uma incolor ou “indolor” globalização e mundialização, em que alguns entendem que se “evolui”, esquecendo porventura de perguntar o que é que evolui e como e para onde nos leva essa evolução. Parece que cada vez se sabe mais de cada vez menos, mesmo que o saber se tenha liberalizado pelos mais diversos meios, manipulando e embrutecendo não só os mais incautos como os que o não são.

Em 1994, Gilles Lipovestsky escrevia: “a esfera ética tornou-se o espelho privilegiado onde se reflecte o novo espírito do tempo (… ), enquanto a ética reencontra o seu carácter nobre, emerge uma nova cultura, que apenas sustenta o culto da eficácia e da ponderação do sucesso e da protecção moral; não existe outra utopia senão a moral, ‘o século XXI será ético ou não será, de todo’” (Lipovestsky, 1994: 13-14).

Todavia, o que vai ser ou não o século XXI pode ser entendido como uma quase enigma, mesmo que se fale do novo paradigma. Aquele que assenta na economia global e no triunfo do individualismo e onde a chamada mundialização é apontada como a grande responsável pelo estilhaçar dos anteriores modelos das sociedades.

Prisioneiro em grande parte da produção, da matéria e da cultura de massas, não sendo fácil escapar-lhe, de produtor e produto de Cultura, o Homem parece ser hoje quase e só um produto, um produto, aliás, cuja qualidade se altera continuamente, não se sabendo muito bem como proceder à avaliação do “actor” que se vai esquecendo que é antes de mais “autor”, reduzindo a vida a uma existência sem essência.

Se os antigos paradigmas tinham como objectivo a conquista do mundo, com o novo, hoje, esses paradigmas estão em decomposição. O Mundo conhece agora modelos de sociedade muito diferentes. As profundas e rápidas mudanças ocorrem de tal modo que “não há tempo” para disso nos darmos conta. Com um comando à distância nas mãos, parece que temos a oportunidade de tudo conhecer, de nada nos ser estranho. Mas, quanta superficialidade e estranheza! A nova realidade sócio-cultural apresenta-nos um Homem que, tendo em parte perdido a sua verdadeira e essencial dimensão, consegue pensar que tudo está ao seu alcance. O sentido, a significação e a interpretação do mundo são hoje conceitos e ideias conducentes a uma tal objectividade que apenas o determinismo parece caber nas vidas das sociedades e dos homens, como expressão de um mundo mais virtual que verdadeiro, mesmo que sejamos constantemente convocados a pensar que é o mundo virtual o verdadeiro.

Assistimos, há algum tempo já, ao final de uma civilização e podemos dizer que com ela caíram em bloco os “clássicos” sistemas totalitários nos países do leste da Europa, mesmo que nessa mesma linha política e ideológica alguns redutos ainda permaneçam. Contudo, as “velhas prisões” desde cedo anunciavam outras, embora com outras roupagens e aspectos e contextos bem diversos. Estas novas prisões podem apresentar-se das mais variadas formas, tendo todas em comum a desconsideração do lugar do homem no mundo, que, de questão filosófica por excelência, é remetido para uma dimensão mais ou menos instrumental, onde os valores são substituídos por critérios económicos. A inquietude, a angústia devida à perda das nossas referências habituais, vendo surgir e invadir-nos a força e o poder do lucro, a violência e o medo como os modos mais banais do acontecer quotidiano, transformam-nos em imagens deturpadas, das quais é urgente ter consciência, sob pena de nem um exemplar restar para incluir na Arca de Noé.

 

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As conquistas técnicas e científicas colocam-nos também elas perante os maiores paradoxos e evidentes logros, não sendo desajustado falarmos hoje de uma nova ignorância radicada entre outros aspectos no obscurecimento da própria essência do conhecimento científico. Especializadíssimas e numerosas, qual é o papel das ciências hoje — servem que valores, que interesses? As antropologias científicas, filosóficas e teológicas manifestaram alguma indiferença face a uma “actualizada” compreensão do humano.

Não dá dinheiro e não responde àquelas perguntas essenciais e vitais: “o que somos?, o que fazemos aqui?, de onde vimos e para onde vamos?”. Mesmo para a Filosofia, para a qual estas questões são desde há séculos de interesse supremo e a sua própria razão de ser e da sua existência, parece assistir-se, neste estranho novo mundo, a um relegar de planos, em que ganham proeminência o materialismo, o hedonismo, a permissividade, a revolução sem finalidade e sem programa, o relativismo e o consumismo.

Da surpresa inicial logo se segue uma progressiva indiferença ou, em certos casos, a necessidade de aceitar o que se pensa ser irreversível. Verdadeiramente aprisionados numa estreiteza e rigidez de vida, cada vez mais deixamos de visionar esses horizontes, que, contudo, continuam a existir mesmo quando o homem os não vê, mesmo que filosoficamente esta posição seja contestável.

Já em 1965 Paul Ricoeur escrevia que “antes da questão da autonomia, antes da questão do prazer e do poder, ergue-se a questão do sentido e do não-sentido”, escrevendo também: “O mundo moderno dá-se a pensar sob o duplo signo da racionalidade e absurdidade existentes (… ). Os homens têm falta de justiça, certamente, de amor, seguramente, mas mais ainda de significado” (Ricoeur, 1988: 59).

Significado bem difícil de atingir em sociedades em que reina a indiferença de massa, onde o que importa e domina passa por jogos de saciedade, de autonomia do “cada um”, na insanável lógica de um individualismo sem limites. A confiança, a crença e a esperança no futuro dissolvem-se em prol de um presente marcado por um individualismo hedonista, onde o que mais importa é manter-se e ser-se sempre jovem, esquecendo-se o Homem, na sua mais elevada e ampla dimensão.

A mudança, noção e realidade maior sem a qual os homens podem entender-se, aparece como algo sem grande importância, esquecendo-se, o homem, que ele é o seu grande actor, autor e realizador.

Destino trágico e apocalíptico seria o do homem e do mundo onde a consciência para sempre fosse aniquilada e a filosofia verdadeiramente filosófica não fosse capaz de enfrentar os martírios, às vezes, muitas, a solidão, e gritar contra a “fragmentação transfinita da cultura e dos eus”, e se apresentar como um espaço integrador, “um espaço de lucidez que se inscreve e desfaz nos instantes de que o tempo é feito” (Malho, 1987: 19).

Se do homem se puder continuar a afirmar que é um ser livre, mesmo que sujeito de uma transfinita liberdade, e que é por tudo responsável, será então de nos questionarmos sobre de onde somos e que raça habita em nós ainda.

O Homem que, dos interstícios de uma nova realidade vai surgindo, tendo como ideologia o pragmatismo, como norma de conduta o que socialmente vigora ou o que está na moda, fundamentando a sua ética nas estatísticas, substitutas das consciências e uma moral onde impera a neutralidade, a subjectividade e a ausência de compromisso, relega e renega o seu verdadeiro sentido e condição.

Contudo, não deixamos de assistir à inquietação com o rumo dos humanos, o que significa, recorrendo à terminologia de Lyotard, que, apesar do inumano, falar dos seres humanos humanamente surge como um sinal de grande esperança.

 

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Esperança vai ser também uma realidade luminosa que vamos encontrar em Leonardo Coimbra, pensador português do início do século XX (1883-1936), que acreditava no pensamento como garantia e superação de todos os cepticismos — como escreveu na sua obra O Criacionismo , “o pensamento responde pensando e, pensando, se ergue, engrandece e justifica”, assim buscando “a harmonia e a fraternização” (Coimbra, 2004: 79). Por isso, considera este autor que é pelo pensamento que tudo se condena ou liberta, sendo “o cousismo” a expressão que usa como contrária ao criacionismo (o seu eu sistema filosófico, como responsável pela petrificação de alguns sistemas filosóficos como o positivismo, o pragmatismo e o materialismo). Aliás, para este autor, a vida não pode encerrar-se em nenhum sistema estático de pensamento e, consequentemente, do conhecimento, porque o próprio pensamento é progresso dialéctico, infinito avanço em sínteses progressivas, aí se descobrindo como infinito, eterno e criador, neste processo consistindo o próprio método filosófico leonardino.

Desde a Ciência, a Arte, a Moral, a Filosofia e a Religião, o homem tem todo um caminho a percorrer de modo livre (porque entende a Filosofia como um órgão de liberdade), até chegar às mais altas realidades onde, no culminar do Princípio da Harmonia, a dialéctica criacionista se aproxima de Deus assimptoticamente, aí residindo a fundamentação ético-religiosa da Pessoa, bem como da sua filosofia criacionista.

O mal e as dificuldades existem, o Universo amoral também, mas o homem poderá aceder a um plano de pessoa moral e cósmica. Seguindo um método pedagógico e construtivo, Leonardo propõe afinal uma filosofia e um pensamento onde a dimensão antropológica, ética e metafísica fazem do homem o grande obreiro, o grande construtor da sua própria vida, como da vida do Universo, afirmando por isso, na sua obra A Rússia de Hoje e o Homem de Sempre, que “o homem não é uma inutilidade num mundo feito, mas o obreiro de um mundo a fazer” (Coimbra, 2004: 82).

 

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E, para concluir, diremos que, a nosso ver, o grande paradoxo será então o da constatação de uma história do homem onde a luta pela liberdade e pe- la felicidade, numa trajectória de esforço contínuo, ocorre num penoso es- forço de emancipação, desde a “velha escravatura”, passando pelo “escravo-objecto e proletário animal” e por todo o tipo de opressões, porque, e depois de tudo isso, viver legal e “livremente”, às vezes fascinado, às vezes resignado com uma civilização a que parece atribuir poderes mágicos, é efectivamente um espanto.

Em detrimento de si próprio, relegando-se para um lugar de produ- to e de mercadoria, olha a ciência como “uma gigantesca águia, que, firme, nas suas vigorosas asas, corta rápida e audaz pelo Infinito da actividade cósmica e à luz da razão lhe vem decifrar os segredos maravilhosos” (Coimbra, 2004: 89).

O que temos diante de nós é um movimento onde o desequilíbrio de forças e o progresso humano se faz em prejuízo do Homem, que, desa- tendido, terá que pedir urgentemente lugar na civilização. Tudo isto sob pena das sociedades contemporâneas se transformarem, ainda mais, em sociedades de homens solitários neuróticos e num imenso pântano de in- diferentes que fazem de conta que vivem no que se diz serem sociedades desenvolvidas e avançadas – já que as outras, as oficialmente consideradas subdesenvolvidas e terceiro-mundistas, estão sujeitas a outras considerações, onde todo o tipo de excessos, de riqueza, de consumo e de prazeres vivem às vezes “paredes-meias” com quem nada tem, parecendo, vergonhosamente, que tudo isso é legítimo.

Essa anestesia do humano e essa ausência de uma consciência crítica, por mais acentuada que seja, não pode impedir a inquietação e a consciência que nos permitem fixar novas fronteiras para o humano, onde estejam presentes as questões éticas, considerando os novos imperativos e a permanência de uma vida autenticamente humana na terra, em suma, onde o homem possa efectivamente ser…

Podendo embora considerar-se este discurso como uma espécie de clássica glossa de algumas das questões sobre a desumanização que os tempos pós-modernos vivem, pensamos efectivamente que estamos hoje face a um dos maiores paradoxos: o da desumanização, só possível pelo próprio homem, e apenas a ele cabendo a sua superação.

Um Paradoxo do Tempo Pós-Moderno

É difícil caracterizar o nosso momento histórico. Por um lado, ele parece ser um momento de transição. Mas em que sentido?
A palavra “desvio” ou “errante” é, talvez, a melhor para caracterizar o nosso momento histórico. De fato, o desenvolvimento da civilização, por causa da ciência e tecnologia, parece estar a levar-nos a um bloqueio, sem saída. Será esse um paradoxo do tempo pós-moderno?
Eis o que procuraremos ver, em diálogo com pensadores como Lyotard, Ricoeur e Leonardo Coimbra.