Camilo José Cela e um suposto vocabulário do baralhete

A publicaçom polo escritor Camilo José Cela de um vocabulário inédito atribuído à gíria gremial dos afiadores ambulantes galegos, denominada baralhete, suscitou o interesse polo seu estudo com o fim de determinar a procedência das palavras nele incluídas. A análise pormenorizada da origem das vozes que o componhem revelou que tal vocabulário nom pode pertencer à citada gíria.

Sob o título de “Más sobre el barallete”, o escritor Camilo José Cela publicou un artigo no jornal ABC de Madrid de 21 de março de 1999 sobre a gíria dos afiadores galegos, posteriormente reproduzido no livro póstumo Retorno a Iria Flavia. Obra dispersa y olvidada, 1 940-2001 , em ediçom de Olivia Rodríguez González, quem selecionou os artigos, ensaios, discursos e cartas que componhem este livro (Cela, 2006) . No citado artigo o autor informa de umha nova compilaçom de vozes do baralhete, a gíria dos afiadores, a qual consta de 25 palavras que reproduz com o seu significado e que afirma ter obtido de “doña Dorinda Barros, la madre de los Barreiros” (Cela, 2006: 159) . Sem mais dados sobre a identidade da informante, supugemos e verificamos pessoalmente que se refere a María Dorinda Ramos Ramos, viúva do empresário galego de automoçomEduardo Barreiros, e Presidenta de Honra da Fundaçom Eduardo Barreiros.

Antes da reproduçom do novo vocabulário o autor do artigo introduze-o informando de que o baralhete é a gíria falada polos afiadores de Nogueira de Ramuim, e de que a primeira notícia da mesma foi publicada em 1953 por José Ramón e Fernández Oxea. Na realidade é a gíria dos afiadores e também doutros ambulantes galegos das comarcas de Ourense, Maceda, Caldelas e Trives. Igualmente, comenta um episódio biográfico, já reproduzido anteriormente num dos seus livros, em que refere o encontro que numha ocasiom tivo cum afiador galego em Castela e a zanga que a este lhe provocou o facto de se dirigir a ele em baralhete, justificada polo zelo com que os membros deste grémio protegem a sua gíria do conhecimento dos alheios.

A seguir oferece o vocabulário, apresentando-o como inédito, já que as suas palavras nom estám recolhidas na compilaçom feita por Ramón e Fernández Oxea (1982 [1968] ) . Com efeito, nom estám recolhidas por este autor e também nom por posteriores compiladores desta gíria como Álvarez Álvarez (1965) , Fidalgo Santamariña (1988, 1992) ou o autor deste trabalho (Rodrigues Gomes, 2008) , nem por anteriores, como o escritor galego Castelao (Hermida Gulías e Suárez Vázquez, 2008) , e também nom as encontramos no vocabulário que o escritor Fernández Ferreiro (1992; 1ª ed. 1980) inclui na sua novela A saga dun afiador.

Como lingüista e estudioso dos criptoletos gremiais e, nomeadamente, do baralhete, lim e estudei com muito interesse o vocabulário publicado por Camilo José Cela, embora afinal com certa deceçom, visto que, com efeito, as tais palavras nunca foram recolhidas porque nom pertencem à citada gíria, mas ao galego comum. A seguir apresento este vocabulário com a definiçom oferecida por Cela e a explicaçom etimológica que para cada um dos termos encontrei:

achiscado, definido como “esperto, inteligente, engenhoso”. Existe em galego o termo achiscar “vislumbrar”, e, portanto, achiscado “vislumbrado” (Otero, 2003 [1977] ).

aganduxar, definido como “assear”. Em galego é umha variante dialetal de gandujar “alinhavar”.

arriscar, definido como “arranjar, enfeitar”. Nalguns lugares da Galiza este verbo utiliza-se com o significado de ataviar-se ou assear-se com esmero (Valladares, 2003 [1884] ; García, 1985) ou formar riscos e adornos no peitilho da camisa (Rodríguez González, 1958).

ativiñar, definido como “arriscar”. Nom encontramos um étimo certo para este vocábulo, embora tenha umha grande semelhança fónica com adivinhar.

axofrado,-a, nom aparece definida já que informa que a sua comunicante nom se lembra do significado. Em galego é o participio de axofrar, variante de enxofrar.

calanfranón,-na, definido como “desajeitado, desastrado”. Está claramente relacionado com o termo galego dialetal calinfórnio de idêntico significado (RivasQuintas, 2003).

chinostra, definido como “sentido comum”. Este é um termo dialetal castelhano que tem o significado de “cabeça” (León, 1992).

chouriciño,-a, definido como “feiote e desleixado”. É o diminutivo do galego chouriço utilizado com umha modificaçom semántica baseada na comparaçom de umha pessoa de pouco atrativo físico com um chouriço, considerando este como objeto carente de valor estético.

dunicela, definido como “pessoa curiosa e intrometida”. Este é um dos nomes da doninha, e o significado que se lhe dá é umha extensom semántica baseada em características atribuídas a este animal.

enfunadiño,-a, definido como “de bom aspeto, de porte vistoso”. O termo enfunado aparece registado nalguns dicionários galegos com o valor de “amplo” (Filgueira Valverde et al, 2003 [1926] ). Emn Portugal o verbo enfunar refere-se ao facto de tornar panda ou bojuda umha vela, e também ensoberbecer-se, portanto, enfunado “ensoberbecido”, “ufano”, o qual tem relaçom com a voz deste vocabulário, já que alguém com“bomaspeto” pode sentir-se “ufano”.

enfunouxar, u.t.c. prnl. (sic), definido em pretérito como “melhorou de aspeto”; dado que se trata de um verbo julgamos haver um erro na definiçom e que deveria dizer melhorar de aspeto. Diversos dicionários galegos recolhem a voz dialetal desenfouxar com o significado de “limpar” (Valladares, 1 884; Filgueira Valverde et al, 1926) ; este termo provavelmente provenha de desenfouzar, metátese de desenzoufar “tirar as nódoas”. A voz enfunouxar parece um cruzamento de desenfouxar com o verbo enfunar do verbete anterior.

enmorrongado, definido como “mal-humorado”. O verbo enmorrongar-se está recolhido no vocabulário galego de Elixio Rivas Quintas (2003), com o significado de “amuar”, e parece estar formado do termo castelhano morro “focinho”, através da expressom ponerse de morros “amuar”. É evidente que estamos ante a mesma palavra.

escarambón,-na, definido como “tosco, túçaro, de mau carácter”. Conhecemos as vozes carambelo e carambano “pedaço de gelo” e o verbo escarambar- se “formar carambano”, fonologicamente próximo de escarambón. Também está recolhido o termo carambeliom “o que carambelea”, quer dizer “o que anda com as pernas tortas” (Otero, 1977). A voz deste vocabulário poderia estar inspirada nalgumdos termos citados.

guliscañón,-na, definido como “curioso, bisbilhoteiro, coscuvilheiro”. Em galego conhecemos o verbo, com carácter dialetal e de provável origem castelhana, uliscar “procurar com o olfato algumha cousa”. O presente termo é um derivado de um suposto guliscar, deformaçom fonética evidente de uliscar. O seu significado gerou-se a partir de umha ampliaçom semántica inspirada numha comparaçom que tem como base o facto de os animais procurarem coisas farejando, e que também se produziu na voz cheirom, termo que nom se refere apenas a quem cheira muito, mas também a quem gosta de indagar nos assuntos alheios.

incunicado,-a, definido como “acanhado, retraído, tímido”. É a voz galega enconicado de idêntico significado (Rodríguez González, 1958).

langrina, definido como “fame canina”. É voz galega dialetal (Rivas Quintas, 1988) derivada do verbo langrear “desfalecer de fame”.

morrongo,-a, definido como “desagradável, de mau aspeto, de mau carácter”, e sobre o que se adverte que se usa com freqüência em diminutivo quase carinhoso: morronguiño,-a. Em espanhol coloquial morrongo é umha denominaçom do gato, contudo, dada a sua semelhança semántica, cremos que a voz deste vocabulário tem a ver com o já comentado acima enmorrongado. ravesoco, -a, definido como “rebelde, traste, travesso”, e especificando que referido às meninhas se usa em sentido carinhoso. Pola sua raiz e polo seu significado parece ter relaçom com o termo ravesado, variante popular de arrevesado “complicado”, “de feitio difícil”.

ringayete, definido como “insignificante, de pouco espírito”. É um diminutivo do termo dialetal ringalho “indivíduo pequeno e delgado” (García, 1985) , relacionado com a voz popular nalgumhas partes de Portugal cheringalho “indivíduo maltrapilho”, “pessoa pouco desenvolta para a idade”, e mesmo “pessoa de pouco crédito” (Barros, 2002) e que na transcriçom de Cela apresenta provavelmente um erro ortográfico, ao utilizar a letra em lugar do dígrafo .

riquitano,-a, definido como “insignificante, pequeno, de poucas luzes”. Esta voz parace mais umha variante do termo raquítico, igual que outras registadas no galego popular como enriquitado, riquete ou requitoso (García, 1985), todas com o significado de raquítico ou mui pequeno, e com as que a voz compilada apresenta parecido formal.

sayolo, definido como “roupa disforme ou demasiado grande”. É, evidentemente, a palavra saio “antigo vestuário de home, largo e longo” com um sufixo diminutivo de valor pejorativo.

trargo, definido como “o demónio”. É o termo trasgo pronunciado com rotacismo, freqüente em galego popular ante consoante sonora. Ainda que normalmente designa um ser fantástico que fai travessuras de noite nas casas, tampouco é desconhecido o seu uso para denominar o demónio.

urgañar, definido como “bisbilhotar, enredar”. Trata-se da voz castelhana hurgar “remexer” ou “bisbilhotar”, com um sufixo acrescentado, mas o qual nom modifica o significado original.

xanmantelas, definido como “tranqüilo, desinteressado, desligado”. É um composto de xan e mantelas. O primeiro aplica-se ao home sem carácter, e o segundo designa popularmente, em galego, alguém crédulo e acanhado.

zarafolas, definido como “desordenado e que nom acerta umha”. Em galego está recolhido o termo zarafulas (Rivas Quintas, 1978), metátese do mais freqüente larafuzas, e que se aplica a umha pessoa suja.

Das vinte e cinco palavras deste vocabulário sete som vozes galegas, algumhas dialetais, com o mesmo significante e significado com que som utilizadas em galego: arriscar, axofrado, enmorrongado, encunicado (incunicado na lista), langrina, trasgo (trargo na lista) e xanmantelas (composto de xan e mantelas). Sete som vozes galegas com umha pequena modificaçom semántica relacionada com o seu significado original, das quais três apresentam também algumha modificaçom formal: achiscado, chouricinho, donicela (dunicela na lista), enfunadinho, enfunouxar (cruzamento de desenfouxar e enfunar), ringalhete (ringayete na lista e derivado de ringalho) e zarafolas (variante de zarafulas). Seis som vozes galegas dialetais com umha leve modificaçom formal: calanfranón, guliscañón, morrongo, ravesoco, riquitano e saiolo. Há outra palavra igualmente galega, aganduxar, mas com umha modificaçom semántica desmotivada. Duas palavras som castelhanas: chinostra e urgañar, esta última modificada formalmente com um sufixo. Das duas restantes, ativiñar e escarambón, desconhecemos a sua origem, embora para a segunda já tenhamos oferecido algumha hipótese.

Temos perante nós um conjunto estranho de palavras galegas, na sua maioria dialetais e quase todas levemente modificadas. Com efeito, gírias gremiais como o baralhete nutrem-se em grande parte de léxico popular modificado formalmente mediante sufixos, prefixos e metáteses, e também de léxico dialetal (Rodrigues Gomes, 2008: 41-84). Dos termos aqui estudados encontramos cinco modificados com sufixos, ringallete (ringallo + -ete), ravesoco (ravesado + oco, com substituiçom da terminaçom original), riquitano (riquete + ano), saiolo (saio + olo) e urgañar (urgar + -añar), que nada acrescentam ao seu significado original, igual que acontece com muitas vozes do baralhete tomadas do galego e naturalizadas na gíria mediante estes afixos deformadores que dificultam a sua identificaçom para as pessoas alheias ao grémio. Nengum dos cinco sufixos aqui utilizados som os habituais no baralhete, embora encontremos algum exemplo de todos eles nesta gíria: com –ete, solete “só” (do castelhanismo solo); com –oco, fioco “feio”; com –ano, solano “só” (do castelhanismo solo); com –olo, picolo “cravo” (de pico) e com –anhar, picanhar “coser” (de picar).

Também chamam a atençom do estudioso do baralhete outras características deste vocabulário. Por exemplo, das vinte e cinco palavras fornecidas, quinze som adjetivos. Esta classe de palavras é pouco freqüente nas gírias gremiais, e as que conhecemos quase sempre referem conceitos básicos do tipo “bom”, “mau”, “grande”, “pequeno”, “rico”, “pobre”, “porco”, “limpo”, etc. É raro encontrar um adjetivo que designe conceitos tam precisos como “intrometido”, “mal-humorado”, “bisbilhoteiro”, “acanhado”, “rebelde”, “insignificante”, “desinteressado” ou “desordenado”, e mais raro encontrar tantos como observamos no presente vocabulário. Além de ser esquisita a presença de adjetivos que refiram este tipo de conceitos, também o é que para alguns deles se apresentem mais de um, quer dizer, que encontremos sinónimos como dunicela e guliscañón, escarambón e morrongo, ou ringayete e riquitano.

Se som pouco habituais em baralhete os adjetivos do tipo dos citados, também o som verbos com significados tam precisos como “arriscar” ou “melhorar de aspeto”. Também nos chama a atençom que apareça na mesma lista o verbo arriscar com o significado dialetal de “arranjar, enfeitar” e a seguir ativiñar com o de “arriscar”. Finalmente, acrescentar que nos parecem igualmente estranhos os comentários de uso dalgumhas das vozes, como que morrongo “desagradável, de mau aspeto, de mau carácter”, tenha um uso diminutivo de carácter “carinhoso”, ou que ravesoco “rebelde, traste, travesso” se utilize em sentido também carinhoso aplicado às meninhas; tudo isto, sem mais qualquer tipo de esclarecimento, é difícil de integrar com os conhecimentos que temos do baralhete e do seu uso, linguagem secreta utilizada polos membros do grémio com a única finalidade de nom serem entendidos, e cujas mensagens costumam ser as básicas da comunicaçom primária.

Em conclusom, julgamos que o vocabulário que Camilo José Cela atribui ao baralhete nom pode pertencer a esta gíria polas seguintes provas:

1. Das vinte e cinco palavras oferecidas nengumha coincide com as mais de mil e quinhentas recolhidas antes nas compilaçons publicadas por diferentes autores.

2. Todas, exceto três, som termos galegos comuns ou dialetais, quer literais, quer alterados levemente na sua forma ou significado.

3. Apresenta umha proporçom excessiva de adjetivos com significados caracterizadores, de umha precisom rara nos criptoletos gremiais, e só umha das vozes do vocabulário designa um conceito concreto e geral, e nom abstrato e preciso: o termo galego trasgo.

4. O procedimento de formaçom destas palavras nom se ajusta aos padrons conhecidos do baralhete: modificaçom formal de palavras do léxico comum galego por sufixaçom naturalizadora, modificaçom semántica de palavras do léxico comum, empréstimos de línguas estrangeiras, nomeadamente do romani e do basco, composiçom sintagmática, etc. (Rodrigues Gomes, 2008: 39-90).

Em conversa telefónica, a filha de dona Maria Dorinda Ramos Ramos, dona Mariluz Barreiros Ramos, afirmou-nos que as palavras que a sua nai forneceu a Camilo José Cela aprendeu-nas de pequena na sua aldeia natal de Cerreda, no concelho de Nogueira de Ramuim, terra de afiadores, embora na sua família nom tenha havido pessoas que exercessem esta profissom, e que a sua nai supujo procederem do baralhete. Depois do seu estudo pormenorizado estamos certos de que se trata de umha atribuiçom errada, e que o vocabulário publicado por Cela deveria ter sido apresentado, simplesmente, como um conjunto de vozes galegas dialetais, algumhas delas, com certeza, originais.

Um Paradoxo do Tempo Pós-Moderno

É difícil caracterizar o nosso momento histórico. Por um lado, ele parece ser um momento de transição. Mas em que sentido?
A palavra “desvio” ou “errante” é, talvez, a melhor para caracterizar o nosso momento histórico. De fato, o desenvolvimento da civilização, por causa da ciência e tecnologia, parece estar a levar-nos a um bloqueio, sem saída. Será esse um paradoxo do tempo pós-moderno?
Eis o que procuraremos ver, em diálogo com pensadores como Lyotard, Ricoeur e Leonardo Coimbra.

Fernando Pessoa: O Cientista de Depois de Amanhã

 

Este artigo propõe uma abordagem do poema “Análise” (1911), de Fernando Pessoa, visando demonstrar como o texto engendra, sob o disfarce lírico-amoroso, e através de sua aproximação com o Livro do desassossego, uma das mais altas sínteses do pensamento desdobrado e da poética da inteligência que singularizam o lirismo reflexivo de seu autor

Esse cientista de depois de amanhã
terá um escrúpulo especial pela sua própria vida interior.
Livro do desassossego .

Para poder obter a perfeição
fora precisa uma frieza de fora do homem
e não haveria então coração de homem
com que amar a própria perfeição.
Livro do desassossego .

Análise

Tão abstrata é a ideia do teu ser.
Que me vem de te olhar, que, ao entreter.
Os meus olhos nos teus, perco-os de vista,.
E nada fica em meu olhar, e dista.
Teu corpo do meu ver tão longemente,.
E a ideia do teu ser fica tão rente.
Ao meu pensar olhar-te, e ao saber-me.
Sabendo que tu és, que, só por ter-me.
Consciente de ti, nem a mim sinto..
E assim, neste ignorar-me a ver-te, minto.
A ilusão da sensação, e sonho,.
Não te vendo, nem vendo, nem sabendo.
Que te vejo, ou sequer que sou, risonho.
Do interior crepúsculo tristonho.
Em que sinto que sonho o que me sinto sendo

— (Pessoa, 1965: 106-107)

I

Escrito em dezembro de 1911, “Análise” permaneceu inédito durante a vi- da de Pessoa, tendo sido publicado pela primeira vez na biografia de João Gaspar Simões, Vida e Obra de Fernando Pessoa – história de uma geração (vol. II. Amadora: Bertrand, 1950). Posteriormente, o poema recebeu no Cancioneiro (1942) um lugar incerto, não podendo, a exemplo de tantos outros poemas desse conhecido volume, como “Pauis” e “Chuva Oblíqua” — entre aqueles que dialogam mais abertamente com as vanguardas — e os muitos sonetos ali reunidos, ser tratado como uma “canção”.

Embora planejado por Pessoa, entre outros projetos esboçados e igualmente abandonados, o Cancioneiro não é propriamente um livro, tampouco um título original, mas uma reunião de poemas heterogêneos entre si proposta pelos primeiros organizadores da “obra poética”. Com exceção a Mensagem (1934), basicamente reuniu-se ali toda a poesia do ortônimo escrita em português conhecida até então. A julgar pelo gênero indicado no próprio título do volume, é de se supor que Pessoa tivesse da- do outro fim a “Análise”1 . Diferentemente da maioria dos poemas que a Ática (e por decorrência a Nova Aguilar) reuniu no Cancioneiro , no qual predominam as quadras, “Análise” não apresenta partição estrófica, cons- tituindo-se de um único bloco de 15 versos. Assim, será prudente levar em consideração que o tradicional (mas atualmente cambiante) “lugar” do poema é um espaço produzido posteriormente à morte de Pessoa, e que as possíveis relações que se podem estabelecer entre este e os demais poemas daquela edição não são mais ou menos legítimas do que outras relações. O Cancioneiro , tal como o conhecemos hoje, é um contexto hermenêutico de risco. Suas fronteiras são pálidas linhas imaginárias. Sua verdade é uma verdade cultural. Como tal, ela estará sempre a reclamar deslocamentos.

Assim, nossa primeira decisão será a de tratar “Análise” com certa independência com relação a esse espaço tradicional.

II

A disposição espacial do poema em monobloco sugere uma forma poética indefinida. No entanto, se atentarmos para o seu padrão métrico (decassíla- bos heróicos, com variação para o sáfico e para o martelo agalopado), desta- camos do conjunto justamente seu último verso, por se tratar de um alexandrino, o que nos permite descrever o poema como composto por 14 versos + 1. O mesmo pode ser feito com relação à disposição de suas rimas. Considerando todos os versos, temos rimas emparelhadas, duas a duas, até o décimo (AA, BB, CC, DD, EE) e a partir do décimo primeiro o esquema muda para FGFFG. No entanto, se, por sugestão métrica, excluirmos nova- mente o último verso, o sistema rímico nos ajuda a enxergar o poema sob outra perspectiva, que agrupa seus versos do seguinte modo: AABB, CCDD, EEF, GFF. Desse modo, a identificação de grupos rímicos possibili- ta-nos encontrar no poema dois quartetos e dois tercetos, excluindo-se o verso final. E se levássemos a cabo essa leitura e acrescentássemos um ponto final ao 14º verso, teríamos efetivamente um novo final para o poema, com sentido completo: “Não te vendo, nem vendo, nem sabendo / Que te vejo, ou sequer que sou, risonho / Do interior crepúsculo tristonho”.

Novo ou antigo final? Será improvável que Pessoa tenha chegado a compor um soneto antes de nos ter legado os quinze versos de “Análise”? Não conhecêssemos o 15o verso, e a imagem (a única, aliás) dessa face com um riso triste seria um arremate em chave de ouro para o poema. Um riso, aliás, falsamente paradoxal, porque vazio, meio cínico meio irônico, que parece se desenhar naturalmente no eu lírico diante da revelação do vazio de tudo (incluindo ele próprio). Não estarmos diante de um soneto não impede que entrevejamos nesse bloco de quinze versos a sombra des- sa tradicional forma fixa, e que o enxerguemos, desse ângulo, como um exemplo de sua subversão.

III

Seria possível identificar que tipo de soneto é esse? A primeira impressão que temos ao ler “Análise” é a de que se trata de um poema de amor: “Tão abstrata é a idéia do teu ser / Que me vem de te olhar, / que, ao entreter / Os meus olhos nos teus, perco-os de vista”. Há um “eu” que se dirige a um “tu”, que, aos olhos do leitor, pode representar a figura da “mulher amada”. Essa não é uma impressão óbvia, porque não se define em momento algum o estatuto desse outro ser no poema, do mesmo modo que a palavra “amor” é textualmente ignorada. No entanto, a con- jugação do verbo “ser” na segunda pessoa do presente do indicativo, “Sabendo que tu és”, convida-nos a “humanizar” esse “tu”. Acrescente-se a isso o enlevo do eu lírico, que, no seu mais forte desejo de alcançar o outro, perde-se a si mesmo (“nem a mim sinto”), e temos um forte indí- cio de amor-paixão no poema.

Em “Análise”, o desejo pelo outro o transforma numa entidade abstra- ta, converte-o num “tu” sem realidade física, produto da racionalização do eu lírico, que, de tanto raciocinar, auto-anula-se. Consciente do outro, deixa de sentir a si mesmo. Assim como o “tu” é convertido em idéia do “eu”, o próprio “eu” passa a ser objeto de si mesmo, fundido ao “tu” como abstração.

Nesse sentido, Pessoa parece reler um tema clássico. É conhecida a citação de Petrarca, “L’amante nell’amatto si transforma”, no soneto de Camões (um soneto , aliás) em que a análise do sentimento amoroso não se dá pelo plano da percepção (o eu lírico que observa a mulher amada), mas por sua abstração (o eu lírico que encontra em si a amada): “Transforma- se o amador na cousa amada, / Por virtude do muito imaginar; / Não tenho logo mais que desejar, / Pois tenho em mim a parte desejada”. Apesar de no poema de Pessoa a dimensão amorosa não ser explícita, ela pode ser compreendida de forma análoga à camoniana: o “eu” pessoano abstrai o “tu” ao qual se refere de modo similar ao que o “amador” camoniano imagina a “amada”.

Ambos os poemas tratam da temática da idealização do outro. No entanto, se no soneto de Camões o ser amado é uma projeção do sujeito desejante, que uma vez consciente disso percebe a inutilidade do desejo anímico (“Pois tenho em mim a parte desejada”), já no seu arremate, esse mesmo sujeito confessa a insuficiência dessa abstração (“O vivo e puro amor de que sou feito, / Como a matéria simples busca a forma”). Já em “Análise”, o ser desejado se mantém preso ao pensamento, é irremediavel- mente produto da imaginação, e o desejo se converte num desejo do desejo, o amabam amare, de Santo Agostinho.

Em “Análise” não temos nem a figura da “mulher” nem a do “eu enamorado”. Considerando-o por este viés, talvez ele seja mesmo o contrário do que aparenta, isto é, um poema sobre a impossibilidade do amor, um poema profundamente trágico, baseado na percepção de que para este “eu” que fala, a sensação não perdura mais do que um estalo, pois é logo convertida em consciência da sensação, ou seja, em idéia. Podemos encontrar um certo desencanto, inclusive, na idéia da existência de seres que se possam completar, a exemplo dos casais amorosos: “Para com- preender”, afirma Bernardo Soares (81), “destruí-me. Compreender é es- quecer de amar”. Ou ainda:

Nós não podemos amar, filho. O amor é a mais carnal das ilusões. Amar é possuir, escuta. E o que possui quem ama? O corpo? Para o possuir seria preciso tornar nossa a sua matéria, comê-lo, incluí-lo em nós… E essa impossibilidade seria tem- porária, porque o nosso próprio corpo passa e se transforma, porque nós não possuímos o nosso corpo (possuímos apenas a nossa sensação dele), e porque, uma vez possuído esse corpo amado, tornar-se-ia nosso, deixaria de ser outro, e o amor, por isso, com o desaparecimento do outro ente, desapareceria… (Soares, 329)2

“Análise” não é um poema de amor tradicional — não é, digamos, “amoro- so” no tom ou na perspectiva, mas um “poema de amor” (se, a essa altura, essa expressão ainda mantiver alguma referencialidade em nossas mentes) ao modo de Pessoa. Isso porque radicaliza um procedimento de escrita que seu autor definiria como próprio desse gênero em um ensaio chama- do “Erostratus — Ensaio sobre a fama póstuma de obras literárias”:

Qualquer indivíduo que seja, de algum modo, poeta sabe bem como é muito mais fácil escrever um bom poema (se os bons poemas porventura se encontram ao alcance de tal ho- mem) acerca de uma mulher que o interessa muito do que acerca de outra por quem está profundamente apaixonado. O melhor gênero de poema de amor tem geralmente por te- ma uma mulher abstrata.
(Pessoa, 1973: 250)

Todo poema de amor é uma idealização. Aquele que um dia definiu o amor, sentimento tão contrário a si, como “fogo que arde sem se ver”, não experimentava, no ato de composição dos seus versos heróicos, o arreba- tamento desse sentimento em seu estado puro. Pelo contrário, ele distan- ciava-se dele. Pessoa previa que as sensações deveriam ser intelectualizadas para que pudessem ser transfiguradas literariamente. Através da abstração do sentimento, ele pode ser formalizado num poema e alcançar êxito estético. Fingir a dor que deveras sente é, possivelmente, a declaração mais exata sobre o ofício do poeta.

IV

Assim como “Análise” pode ser formalmente identificado como uma subversão do soneto, e se já indicamos qual seria provavelmente esse soneto, estamos à altura de encará-lo como um falso poema de amor. Isso porque, para Pessoa, tomar posse das coisas e das pessoas significa convertê-las em abstrações: “O que é certo é que as coisas que mais amamos, ou julgamos amar, só têm o seu pleno valor real quando simplesmente sonhadas. (…) toda a gente interessante é convertível em sonho” (Soares, “O Sensacionista”, 470). Assim, a interpretação lírico-amorosa do poema deve levar em conta a distância que o eu lírico mantém do plano físico – a noção, em suma, de que para gozar o mundo é preciso apreendê-lo, não pelos sentidos, mas como idéia: “Se tocares o teu sonho morrerá, o objeto tocado ocupará a tua sensação” (379). No poema, o eu lírico confessa à pessoa para quem di- rige o olhar que os olhos que a vêem não retêm sua imagem, uma vez que es- ta foi convertida em idéia da imagem. Olhar para o outro é uma experiência fugidia, é já não mais percebê-lo, mas borrar seus contornos concretos e re- fazê-lo pela imaginação, convertê-lo em sonho. Numa expressão, esse eu líri- co sente e imediatamente pensa que sente – olha e já se pega olhando.

Todo o poema se perfaz num espaço intermediário entre dois grupos semânticos: 1) de um lado as repetições dos verbos “ver”, “olhar” e “sentir”, bem como de seus substantivos derivados, “olhos”, “vista” e “sensação”; 2) do outro, os termos “abstrata”, “ideia”, “pensar”, “saber”, “cons- ciente” e “ignorar”. Precisamente, o poema transcorre entre o sentir e o pensar, repousando, já em 1911, em um dos axiomas centrais dessa poesia, isto é, “o que em mim sente ‘stá pensando” (Pessoa, 2001: 144). Nos pró- prios termos do autor (Soares, 484), é “entre a sensação e a consciência dela” que se situa “Análise”:

É entre a sensação e a consciência dela que se passam todas as grandes tragédias da minha vida. Nessa região indetermi- nada, sombria, de florestas e sons de água toda, neutral até ao ruído das nossas guerras, decorre aquele meu ser cuja visão em vão procuro…

“Aquele meu ser cuja visão em vão procuro”, eis o eco da passagem acima. Ora, em “Análise” lemos: “Tão abstrata é a ideia do teu ser / que me vem de te olhar…” Não será este “tu” já o fruto do equívoco da relação entre o eu e o outro, isto é, não será o “tu” resultado de um eu rimbaudianamente extraído e estranho a si, um eu “outrado”? “Análise”, ou (psic)análise, pro- cede pela transformação em objeto do próprio sujeito da elocução. Analisando-se pela fala, o eu lírico é um ser abismado na clivagem entre sujeito e objeto. O eu é um tu. Pessoa expõe a ferida aberta da experiência poética — tragicamente, a sua única forma de existência.

V

“Análise” pode ser lido segundo dois movimentos distintos, marcados pelo ponto final no nono verso. A partir daí, salta aos olhos a oclusão das rimas (-into, -onho, -endo, em oposição a -er, -ista, -er, -me, da primeira parte). Esse fechamento sonoro está diretamente relacionado à maior introspecção da segunda parte do poema, em que a investigação do eu se torna, digamos, mais crepuscular (“Do interior crepúsculo tristonho”), em oposição à luminosidade que as palavras “olhar”, “vista”, “ver”, “longemente” e “corpo” lançam sobre a primeira. Esse contraste entre claro e escuro marca bem as duas estações temáticas do poema, e nos guia para o seu arremate. O 11o verso (“A ilusão da sensação, e sonho”) abre um novo esquema rímico no poema: FGFFG. É interessante atentar para essa alteração de padrão, não como um dado em si, mas porque ela está diretamente relacionada ao modo como lemos o poema. Ele também difere do padrão rítmico heróico, devido às pausas marcadas na quarta e na oitava sílabas métricas (sáfico). Além disso, só podemos lê-lo como os decassílabos anteriores se evitarmos (muito artificialmente) a elisão inicial (A / i-lu-são, ao invés de Ai-lu-são). Consideremos, portanto, que os demais versos reclamam, se não mesmo impõem, uma leitura mais cadenciada deste, que é reforçada ainda pelo uso da vírgula. E quanto maior a cadência, maior a distribuição de ênfase sobre seus termos constituintes.

Ao que parece este é, ao menos do ponto de vista formal, um verso gerador de tensão no poema. Note-se que o uso da rima interna em “-ão” ganha o reforço das vogais fechadas e da rima em “-onho”, conferindo especial densidade ao verso. Em meio à avalanche sintática do poema, repleto de interligações entre os versos ( enjambements), a leitura em alvoroço é refreada pelo uso duplo da vírgula, que isola a expressão “, e sonho,”. Freio de mão, portanto, na velocidade-prosa. Tal como o termo “sonho” vem circunstanciado neste verso, e no poema, em que dá abertura a um novo esquema rítmico, não parece ser mero acaso as rimas terem se alterado a partir de então, de emparelhadas para misturadas. Ora, isso ocorre justamente quando se anuncia o sonho, isto é, a supressão da ordenação lógica e da razão. O mesmo termo é reforçado pela aliteração das sibilantes no próprio verso e nos seguintes, por sua repetição no verso final, e por duas rimas em “-onho” — na verdade a própria palavra “sonho” está contida naquelas com que rima: “tristonho” e “risonho”.

A partir da palavra “sonho” há uma nova e bastante sonora distribuição rítmica no poema: recheados de vírgulas, os versos 12 e 13 lêem-se em martelo agalopado (um ritmo fortemente marcado, com as tônicas na terceira, sexta e décima sílabas). Nessa nova e forte cadência, a profusão de rimas internas e externas em “-endo” e “-onho” lançam o leitor numa atmosfera mais espessa; por sugestão, onírica.

Chegamos ao verso final do poema: “Em que sinto que sonho o que me sinto sendo”. Seguramente, este é o verso mais sonoro entre eles, de uma fluidez melancólica provocada pelas aliterações das sibilantes e das nasais. Ao mesmo tempo, trata-se de um labirinto sintático, particularmente enigmático. Esse alexandrino clássico (com hemistíquio na sexta sí- laba, justamente a palavra “sonho”) funciona como (nova?) chave de ouro para o poema. Ele parece ter sido composto por um processo de reversibilidade, tendo a palavra “sonho” como espelho: “eu sou (eu sonho) logo eu finjo” // “eu finjo (eu sonho) logo eu sou”. Esse verso — espelhado, portanto — apresenta-nos um sujeito transformado em abismo, um abismo aberto por dentro, de fundo desconhecido entre os extremos do sentir e do pensar.

Possíveis modos de parafraseá-lo simplificadamente seriam: “imagino sonhar o que sou”, ou ainda, “finjo ser o que realmente sou”. Mas o emprego do gerúndio no final (“sendo”) acrescenta a essas simplificações a reveladora idéia de continuidade: “enquanto finjo ser o que me sinto ser, eu sou!”. É tão somente como fingidor, enquanto eu me sonho e me construo outro, que realmente posso ser. Eis a experiência moderna e original de Pessoa: “a experiência de certo ‘sujeito-vazio’, que não se beneficia mais do conforto logocêntrico, nem se ilude mais com a falsa unidade ‘profunda’ da pessoa psicológica” (Perrone-Moisés, 73). VI Esse sujeito vazio, desde o primeiro verso do poema, transforma o concreto em abstrato, caminha do que está perto para o que está longe (seja o referencial o “tu” ou o “eu”). Podemos afirmar com segurança que o sentido único do poema é aquele que orienta a perspectiva do particular para o geral. Ora, o que Pessoa terá a dizer a esse respeito?

Creio esta teoria mais lógica — se é que há lógica — que a aristotélica; e creio-o pela simples razão de que, nela, a arte fica o contrário da ciência, o que na aristotélica não acontece.
Na estética aristotélica, como na ciência, parte-se, em arte, do particular para o geral; nesta teoria parte-se, em arte, do geral para o particular, ao contrário de na ciência, em que, com efeito e sem dúvida, é do particular para o geral que se parte. E como ciência e arte são, como é intuitivo e axiomático, actividades opostas, opostos devem ser os seus modos de manifestação, e mais provavelmente certa a teoria que dê esses modos como realmente opostos que aquela que os dê como convergentes ou semelhantes.

(Campos, 254-255)

Esta passagem de “Apontamentos para uma estética não-aristotélica”, tex- to assinado como “Álvaro de Campos”, assinala a busca de uma estética própria e que represente o contrário da “estética aristotélica”. Se, nas pa- lavras de Campos, a estética aristotélica caminha, “sem dúvida”, e a exem- plo da ciência, do particular para o geral, a nova estética deverá ser, “como é intuitivo e axiomático”, o oposto da ciência. Lembremos que a primeira publicação desse texto se deu nos números 3 e 4 da revista Athena (Dez.- Jan. 1924-1925), isto é, treze anos depois da escrita de “Análise”. Se o exu- berante Campos “não-aristotélico” (aquele que valorizava, em suas pró- prias palavras, a “força” e a “potência” em detrimento da “beleza” e da “harmonia”) é facilmente entrevisto como oposto à contenção reflexiva do ortônimo, também não nos caberá compará-los no tocante à posição que ocupam face à ciência? Nesse âmbito, podemos nos referir ao autor da “Ode Marítima” como o oposto de um cientista, ao passo que o autor de “Análise” se comportaria, de modo contrário ao que é “intuitivo e axiomá- tico” — em sua lida para compreender o mecanismo da percepção e da consciência sobre a própria alma — tal qual um cientista munido de um instrumento imaginário e muito preciso:

Penso às vezes com um agrado (em bisseção) na possibilidade futura de uma geografia da nossa consciência de nós próprios. A meu ver, o historiador futuro das suas próprias sensações poderá talvez reduzir a uma ciência precisa a sua atitude para com a sua consciência da sua própria alma. Por enquanto vamos em princípio nesta arte difícil — arte ainda, química de sensações no seu estado alquímico por ora. Esse cientista de depois de amanhã terá um escrúpulo especial pela sua própria vida interior. Criará de si mesmo o instrumento de precisão para a reduzir a analisada. Não vejo dificuldade essencial em construir um instrumento de precisão, para uso autoanalítico, com aços e bronzes só do pensamento. Refiro-me a aços e bronzes realmente aços e bronzes, mas do espírito. É talvez mesmo assim que ele deva ser construído.

(Soares, 106)

Se o drama maior de Pessoa reside justamente na consciência do vazio do sujeito enquanto sujeito real, a resposta imaginária (e momentânea, como sempre) a esse vazio, em consonância com o movimento contínuo de exteriorização, foi imaginar-se cientista (analista!); mas um cientista liberto da gravidade da ciência, um cientista-criança, que, andando em círculos, puxasse um trenzinho de corda por um trilho, e assim descesse, entretido, pela espiral de si mesmo: “…a ciência não é senão um jogo de crianças no crepúsculo, um querer apanhar sombras de aves e parar som- bras de ervas ao vento” (165). Aos olhos de Pessoa, fazer ciência é, por- tanto, e a exemplo do que representa o próprio fazer poético para si, jogar com o impossível.

O menino-Pessoa, “cientista de depois de amanhã”, ou poeta-cien- tista, ao formular suas especulações metafísicas, preconiza, com “precisão” e “imparcialidade”, a “ciência do futuro”: “Os sonhadores atuais são talvez os grandes precursores da ciência final do futuro” (107).

Com “Análise”, por decorrência já do título-anúncio, aquele que nunca pretendeu ser senão um sonhador, realiza, com suas ferramentas oníricas, uma rigorosa investigação íntima, à luz da qual o próprio poema constitui-se como “um instrumento de precisão, para uso autoanalítico, com aços e bronzes só do pensamento”. Com semelhante propósito, afir- ma Bernardo Soares, “A arte é uma ciência” (245):

O homem de ciência reconhece que a única realidade para si é ele próprio, e o único mundo real o mundo como a sua sen- sação lho dá. Por isso, em lugar de seguir o falso caminho de procurar ajustar as suas sensações às dos outros, fazendo ciên- cia objetiva, procura, antes, conhecer perfeitamente o seu mun- do, e a sua personalidade. Nada mais objetivo do que os seus sonhos. Nada mais seu do que a sua consciência de si. Sobre es- sas duas realidades requinta ele a sua ciência. É muito diferente já da ciência dos antigos científicos, que, longe de buscarem as leis da sua própria personalidade e a organização dos seus sonhos, procuravam as leis do “exterior” e a organização daqui- lo a que chamavam “Natureza”.

(485)

O objeto analisado, a própria identidade, antes uma membrana vazia es- condida num corpo, quando exteriorizada e disposta sobre a bancada do cientista, entre a lâmina de vidro da linguagem e a lente sintática do mi- croscópio, torna-se um eu visível, célula divisível, matéria de análise. A “Análise”, ela própria, constitui, assim (para além de uma confissão ena- morada, tal qual, à primeira vista, parece representar), o momento privile- giado pelo qual, ao entreolhar-se, o cientista frio, poeta da perfeição desumana, destaca a consciência de uma consciência, lançando-a para a at- mosfera modificada do tubo de ensaio da linguagem. Espaço de desperso- nalização em que o imaginário funda realidades, entre as quais um eu que não é senão um eu lírico (ou fingido ) – um eu que, afinal, só pode ser (e se olhar) na corrente elétrica da linguagem.

Ora, Que História É Eça?

RESUMO

Neste artigo, pretendo discutir o realismo literário e historiográfico, a partir das relações entre a Literatura e a História no romance A Ilustre Casa de Ramires (1897), de Eça de Queirós. Defendo a tese de que ao aproximar o narrador do romance e o narrador da História, Eça problematiza questões de verdade e subjetividade, bem como implicações da linguagem nos modos de se pensar e representar a realidade; ou seja, em que medida se pode transpor a realidade pluridimensional do mundo, para a realidade unidimensional que é a escrita? Essa perspectiva de leitura instaura uma virada ideológica no percurso queiroseano, sob a qual seu projeto literário não poderá mais ser lido segundo os ideais cartesianos de razão, verdade e objetividade, pertencentes a um realismo tout court, que a historiografia literária insiste em considerar. Tomo, portanto, como ponto de partida para a leitura do romance português, as teorias de Hutcheon (1991), Ricoeur (1994), White (1994) e Duby (1989), sobre as relações entre Literatura e História, e as teorias de Reis (1975), Real (2006) e Duarte (2004), sobre a postulação de um “último Eça”, mais eclético e liberto das imposições do Realismo/Naturalismo.

ABSTRACT

In this paper, I intend to discuss the literary realism and historiography, from the relationship between the Literature and the History in the Eça de Queirós’s novel A Ilustre Casa de Ramires (1897). I argue that Eça, when approaching the narrator of the novel and the narrator of history, he discusses questions of truth and subjectivity, and too implications of language in the ways of thinking and representing the reality. In other words, what extent it can bridge the multidimensional reality of the world, for the one-dimensional reality of the writing? This perspective of reading establishes an ideological turn in the Eça de Queirós’s work, in wich his literary project can not be read according to the Cartesian ideal of reason, truth and objectivity, beloing to a Realism tout court wich literary historiography insists consider. I therefore, as a starting point for the reading of the portuguese novel, the theories of Huctheon (1991), Ricoeur (1993), White (1994) and Duby (1989), about the relationship between Literature and History, and the theories of Reis (1975), Real (2006) and Duarte (2004), about the postulation of a “last Eça”, more eclectic and freed from the dictates of Realism/Naturalism.

AGÁLIA nº 101 / 1º Semestre (2010): 57-81 / ISSN 1130-3557 / URL: http://www.agalia.net

O homem roga-te, ó Musa, assim como Heródoto outrora rogou, inspiração para esta história que por ora começo. Que não será a de Eça, embora dela se fale, mas a minha própria, pois sobre A Ilustre Casa de Ramires, conto, por mais fiel que me queira parecer, uma outra e nova história…

E se assim o é, tomado pela liberdade que o poder da palavra me investe, começo pelo Começo… “No princípio criou Deus os céus e a terra. E a terra era sem forma e vazia; havia trevas sobre a face do abismo. E o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas. Então disse Deus: — Ajuntem-se as águas debaixo dos céus num lugar, e apareça a porção seca! E assim foi. Chamou Deus à porção seca Terra; e ao ajuntamento das águas chamou Mar. E viu Deus que era bom. Assim, disse Ele: —Façamos o homem à nossa imagem e semelhança, e que domine sobre a terra e sobre o mar. E criou Deus, então, o português. Só não conseguiu ver se era bom…”1.

Provavelmente o leitor, se afeito à beatice ou ao realismo costumeiro que preside o olhar ditosamente científico sobre o que será a teima principal deste artigo: as relações entre Literatura e História — olhar que não deixa de ser beatice também —, já abandonou, findo o último parágrafo, por uma dupla heresia, a leitura que iniciou. A primeira reside na inspiração que, invocada, coloca em xeque a validade deste estudo, que, pelo próprio contexto em que se insere — no âmbito acadêmico —, pretende- se científico; afinal, na nossa ótica (ainda e infelizmente) rankiana de wie es eigentlich gewesen2, a inspiração e a subjetividade não parecem lograr sucesso diante dos métodos e conceitos da Ciência, pois, ora, qualquer impulso expressivo coloca em risco a objetividade alcançada com a eliminação do sujeito, não é mesmo?! A segunda, mais óbvia, realiza-se no plano da produção e recepção do texto religioso, que, alterando a Sagrada Escritura, peca contra um conhecimento maior: o que vem de Deus.

E, contudo, em ambas, pecado algum consigo ver; ou apenas nesta última, por respeito às crenças de cada um, mas heresia que, no entanto, acredito perdoada. Mas partamos antes da justificativa primeira: é que para mim, enquanto sujeito historicamente situado e em função das leituras que trago à tona aqui3, essa eliminação do sujeito em favor da qual advogam as ciências — e ironicamente até as identificadas sob o rótulo de “humanas” — não é senão sinal de uma deflagrada presença da subjetividade; não consigo ver um modo pelo qual se possa falar do estético de modo não estético, sem qualquer proximidade com o objeto. Como seria possível não deixar agir a inspiração? Como objetivar o pensamento que, por natureza, nasce da subjetivação? E, nesse sentido, é mesmo de impressionar que a História, sob seu estatuto científico, continue mesmo considerando uma Musa… Se esquecem as boas aves de que Clio representa também a criatividade? De que amusa, filha de Zeus eMnemosine, como suas oito irmãs, não é senão fusão entre Ciência e Arte, mito, história e ficção?

A segunda, se acredito perdoada, é porque Portugal sempre fora em todas as suas Histórias com H maiúsculo, à exceção talvez de alguns trabalhos do romântico Herculano (e vide aí a ironia), modelos de heróicas robinsonadas (Lourenço, 1992), que embora de um h minúsculo, autênticas e confirmadas pela História Oficial; um cantinho onde o mito se mistura à oficialidade de modo tal, que um olhar atento faria duvidar se o Crusoé de Defoe não fora de fato (e fado) português — haja vista a conhecida Batalha de Ourique, celebrada nos Lusíadas e também na Crónica dos Godos (1139), a qual se em princípio, pelo gênero em que se enquadra, deveria narrar e dispor em ordem cronológica os fatos históricos, tal qual Camões, ao fato histórico sobrepõe o mitológico: não é tanto a guerra que narra, mas a aparição e a provençal ajuda de Cristo na luta do isolado rei D. Afonso Henriques contra o exército de mouros infiéis -. Mas, ora, lembremos que estes são apenas exemplos, e a História, ininterrupta, no mais tardar dizer diabólico: “Meu nome é legião”, lá reservara espaço à luta dos Afonsos, Sebastiões, Mestres de Avis e toda a heróica portuguesada, ratificada pelo documento, pelas testemunhas — Virgem Mãe! —, garantida do seu ser nacional e da mão de Deus.

Para além da ficção da Verdade, o que tais exemplos descortinam não é uma estrutura histórica que organiza o universo literário, mas uma estrutura literária e ficcional que não só organiza, como é produto direto e propulsor da História, produzida, no caso português, sem qualquer expediente retórico, como fruto do injustificável e, contudo, crível: incongruência só explicável pela predileção – que leva a crer Páris, português — de uma tradição intelectual muito mais afeita aos amores de Afrodite que ao raciocínio lógico e à astúcia de Palas Atena. Nesse ponto, talvez não sejamera coincidência—mas quemsabe mesmo providência… —, que a lusa literatura nasça sob a égide daquelas cantigas de amor e de amigo tão carentes, tão passionais diante do para todo sempre inacessível; inacessibilidade que, no entanto, a estes eternos trovadores, só poucas vezes emergiu como consciência de subalternidade. Nem mesmo no nosso Eça, que foi não primeiro (vide certo Garret e certo Herculano), mas quem de maneira mais incisiva a evidenciou, a crítica deixará de apontar o romantismo que na vida literária o inicia. Mas, lembremos: o imbecil é mais imbecil ainda quando não se sabe imbecil… Assim será que mesmo em sua fase romântica, não deixará de identificar aquilo que Portugal, por Lisboa, criou: “Atenas produziu a escultura, Roma fez o direito, Paris inventou a revolução, a Alemanha achou omisticismo. Lisboa que criou? O Fado” (Queirós, 2000b: 190).

O Fado estará aqui não só a revelar o gosto pela melodia angustiante e dolorosa, deflagradora da natureza eminentemente romântica portuguesa; significa também destino, fardo, providência, e, etimologicamente, vem da mesma palavra que dá origem a fada. Nesse sentido, misturando ambas as concepções, fado será o peso de um destino providencial marcado pela ascese dos contos de fada, será o sinal e a prova de uma afeição intelectualmuito mais cara à amabilidade da palavra que à sua (apenas desejada, acredito) exatidão. Ora, mas será esse mesmo romantismo que Eça, pelo fado, já identificara como constituinte identitário da nação, uma faca de dois gumes, como o veremos, aliás, com a nossa Ilustre Casa de Ramires (1897): pois se primeiramente, no Primo Bazílio (1878) e n’O Crime do Padre Amaro4 (1876), será objeto de fuga, por corromper o novo propósito do romance, que “ao invés de imaginar”, tinha apenas de “observar”, e “por processos tão exatos como o da própria fisiologia” (ver excerto do artigo Idealismo e Realismo5); com a Ilustre Casa, Eça, mais maduro literariamente, ciente da improdutividade de sua fuga, começará a duvidar da viabilidade estética daquele seu (desejo de) positivismo ferrenho que, pelo artigo—notamos—, outrora presidira o seu olhar.

Mesmo antes, aliás, em carta enviada à Revue Universelle Internationale no ano de 1884, Eça argumentará, a respeito d’O Mandarim (1880), que “cette oeuvre appartien au rêve et non à la realité, qu’elle est inventée et non observée, elle caractérise fidèlement la tendance la plus naturelle, la plus spontanée de l’esprit portugais” (Queirós, 1907), concepção esta ainda reiterada, posteriormente, no largamente citado subtítulo d’A Relíquia (1887): “Sobre a nudez forte da verdade—o manto diáfano da fantasia”, e nas palavras finais de Ega (Eça?) no romance Os Maias (1888): “E que somos nós? —exclamou Ega.—Que temos nós sido desde o colégio, desde o exame de latim? Românticos, isto é, indivíduos inferiores que se governam na vida pelo sentimento e não pela razão…” (Queirós, 2000a: 493). Para além da contradição demasiado evidente entre estes excertos e o anterior, de seu artigo Idealismo e Realismo, fica clara, tão logo, não só a mudança de perspectiva do narrador, enquanto sujeito discursivo, mas das concepções do próprio autor, enquanto sujeito físico, pensador da literatura6.

O que se percebe nesta Ilustre Casa é um Eça que vê, mesmo nos objetivos inteiramente realistas de sua geração, a dúvida dessa inteireza, já que o propósito de desromantização positivista não fora capaz o bastante para levar à rejeição do “não realista” na descrição daquilo que uma vez aconteceu. E o fato é que embora essa virada ideológica tenha sido já evidenciada algumas vezes pela crítica literária, encontra-se relativamente abafada por uma concepção (ainda) unificada de um Eça objetivo, racionalista e assaz nas suas “descrições” de Portugal, preso a um compromisso realista de reajustar o país à sua verdadeira imagem.

Ora, já há mais de meio século, em 1954, na primeira edição de Lengua y estilo de Eça de Queirós, Guerra da Cal (1981) já deixava entrever, ao analisar o modo como se expande, na obra de Eça, o trabalho de experimentação sobre a língua e seu uso, a transição de um estilo desejosamente onisciente e objetivo (através da utilização de referências históricas, de focalizações externas, descrições pormenorizadas e físicas, etc) a um estilo cada vez mais liberto das imposições do Realismo/Naturalismo (valorizador das focalizações internas, do discurso indireto livre e, consequentemente, da subjetividade). Tese esta coincidente com a de Carlos Reis (1975), que, na esteira de Da Cal, conceberá a produção literária do escritor português dividida em três fases: um Eça romântico — o das Prosas Bárbaras (1866-1867) e da primeira versão d’O Crime do Padre Amaro (1875) —, um Eça atraído pelos valores do Realismo/Naturalismo — na segunda e terceira versões d’O Crime do Padre Amaro (1876 e 1880) e n’O Primo Bazílio (1878) —, e finalmente um Eça eclético, aberto a várias tendências estéticas — com O Mandarim (1880), A Relíquia (1887), Os Maias (1888), A Correspondência de Fradique Mendes (1888), A Ilustre Casa de Ramires (1897), e A Cidade e as Serras (1899).

E mesmo as reflexões mais atuais de Real (2006), Piedade (2003), Duarte (2004) e Loureiro (2009) seguirão a mesma linha, não só na identificação/ pressuposição de etapas da produção literária queiroseana, como na negação de que este último Eça possa se filiar a características essencialistas, pendam elas ao lado patriótico-religioso-nacional, ou ao lado revolucionário-militante. É o que Piedade (2003: 126) chamará de “coexistência e conciliação de opostos” na obra do escritor.

O que, em geral, a leitura de todos estes autores sugere vai além de uma polifonia lingüística (no nível das falas das personagens) e estilística do escritor, pois eles sustentam uma virada ideológica no percurso narrativo queiroseano que, além de recuperar uma atitude de valorização da imaginação, parece criar uma nova visão sobre a História, tão mais devota ao olhar atual que ao de seus contemporâneos (e desconcertante à historiografia literária), segundo a qual não vai recuperar, a priori, os acontecimentos da realidade “por processos tão exatos como o da fisiologia”, mas, à semelhança de nossas mais recentes metaficções historiográficas — se quisermos tomar aqui o termo cunhado por Linda Hutcheon (1991) em sua Poética do Pós-modernismo —, propor novas perspectivas, novos olhares para as múltiplas tonalidades — porque, como a Literatura, trata-se de narrativa e não de reconstituição — comque se pode escrever aHistória.

Na verdade, A Ilustre Casa de Ramires aborda exatamente essa questão da relação entre a escrita literária e a histórica (e, por ventura, a verdade em que ambas, positivistas que eram, insistiam reafirmar), algo que, já no parágrafo de abertura do livro, o narrador anunciará:

Desde as quatro horas da tarde, no calor e silêncio do domingo de Junho […] Gonçalo Mendes Ramires […] trabalhava numa novela histórica, A Torre de D. Ramires, destinada ao primeiro número dos Anais de Literatura e de História, revista nova, fundada por José Lúcio Castanheiro, seu antigo camarada em Coimbra, nos tempos do Cenáculo Patriótico, emcasa das Severinas. (Queirós, 2002: 11)

Neste caso, pela própria fundação da revista, cujo título alude às relações entre História e Literatura, a distinção entre o historiador e o escritor, sutilmente, já começa por se diluir, na medida em que História e Ficção ocuparão, no escopo narrativo da revista, um mesmo lugar. E esta, digamos, interseção entrevista nos Anais é apenas reflexo de uma interseção que é princípio estruturante do próprio romance, uma vez que a tematização da escrita de Gonçalo fará com que, se antes tema, a fusão de diferentes modelos de tempo e história seja seu princípio formador.

Esta fusão se dá como resultado de uma dupla emergência no plano narrativo do romance. Num primeiro plano, se contará a história e o tempo de um Gonçalo Ramires personagem, a cuja narração se faz em terceira pessoa, por um narrador onisciente, mas de uma onisciência diferente (como se verá), embora ainda assim deflagradora de toda a decadência na qual mergulhava Portugal, tão mais próximo a suas colônias que de fato ao europeu. Num segundo plano, se contará a história de Gonçalo enquanto escritor de sua novela, que resgata um tempo de heróicos portugueses, no século XII, quando um de seus bravios avós, Trutesindo Ramires, assiste à morte do filho pelas mãos do rival Lopo de Baião, e se entrega a uma vingança que findará com o rival sob um charco, chupado por sanguessugas até a morte.

Dessa forma, a fusão desses dois planos narrativos no romance trará à tona, pelo contraste, a consciência portuguesa de sua pequenez: se no passado, “em cada lance forte da História de Portugal, sempre um Ramires avultou grandiosamente pelo heroísmo, pela lealdade, pelo nobre espírito” (Queirós, 2002: 12); no presente, avulta, pela figura de Gonçalo, um Ramires covarde e volúvel, a cujo heroísmo, lealdade e nobreza de espírito refletem-se apenas como invenção; mas um Gonçalo bacharel, ora essa, e, contudo, “formado com um R no terceiro ano” (Queirós, 2002: 13). Para além da decadência da ilustre casa – que é apenas metáfora de um Portugal, à semelhança de Gonçalo, incapaz de transferir para o presente glórias que estão fadadas à recordação –, o que a profusão destes dois planos implica não se restringe tão somente ao questionamento, de viés realista, do termos sido, mas também do sou, na medida em que tal profusão pode ser encarada como uma alegorização do tempo real, intransponível para o tempo narrativo – e não estaria aqui, pergunto eu, retornando Eça à valorização do caráter inefável da representação, tão caro às poéticas de estofo romântico?

De qualquer modo, a escrita queiroseana não parece ser aqui o modelo de todo processo do real… ou ainda, a única realidade tout court(!), mas, ao contrário, a perseguição incessante das coisas, que não são as coisas afinal. Assim, se a História emerge – e duplamente – na superfície do romance, não é sob o preceito mais cientificeiro que cientificista, de desromantizar (ou objetivar) uma História que via “mesmo no desembargador, o que comeu numa ceia de Natal dois leitões! […] , uma pujança heróica que prova a raça, a raça mais forte do que promete a força humana, como diz Camões” (Queirós, 2002: 19). Não! Pois para robinsonar (ou subjetivar) a palavra, basta dar-lhe forma. E talvez seja justamente esta consciência que autorize aquele mesmo narrador que percebemos tão onisciente, com tanto detalhe e minúcia na apresentação do nosso Gonçalo Ramires, a cometer o pecado da subjetivação, como o vemos na descrição do tal José Lúcio Castanheiro, fundador dos Anais de Literatura e História: “Mais defecado, mais macilento, com uns óculos mais largos e mais tenebrosos, o Castanheiro ardia todo na chama de sua Idéia: ‘a ressurreição do sentimento português’” (Queirós, 2002: 18; grifo meu).

Por aqui se verifica facilmente, pela falta de objetividade e, consequentemente, de rigor científico, a pouca afeição deste narrador a uma onisciência tipicamente realista. Não parece querer buscar em nenhum momento a explicação dos fatos como dados a serem explicitados de maneira objetiva, e tampouco parece se preocupar com a interferência de uma subjetividade ou com a imparcialidade do discurso. Menos ainda busca apagar a sua voz do texto; pelo contrário, não deixa de marcar-se conscientemente como sujeito da enunciação (vide sua criticidade em relação a Castanheiro). O escritor, como narrador de fatos objetivos, desaparece consideravelmente aqui. Quase tudo o que é dito aparece como reflexo de uma parcialidade carregada de descrições altamente valorativas que parecem abolir a distância entre narrador e objeto narrado.

Isso se reflete também na própria mudança de posição deste narrador: se outrora, como n’O Primo Basílio, privilegiou as (ingênuas) focalizações externas, tão resignadas à mera referenciação de eventos e personagens só pretensamente verídicos; com A Ilustre Casa, será a focalização interna das personagens que será privilegiada. A focalização externa só interessará ao narrador na medida em que sublinhar uma característica interior, ou ajudar a compor uma imagem que será louvada ou rechaçada por ele através de suas descrições, tornadas, como vimos com Castanheiro, abertamente políticas. Tenhamos em conta, a despeito desta focalização interna, o episódio em que Gonçalo, conversando com sua prima sobre uma das histórias de seus antepassados, é questionado por ela se não se envergonhava de saber da referida história por um Fado (e mais uma vez o Fado!), ao passo que o narrador o justificará:

– Pois esta história sei eu, prima Maria! Sei agora pelo Fado dos Ramires, o fado do Videirinha…
D. Maria Mendonça levantou as compridas mãos aos céus, revoltada com aquela indiferença pelas tradições heróicas da Casa. Conhecer somente aos seus anais, desde que eles andavam repicados num fado! …
O primo Gonçalo não se envergonhava?
– Mas por quê, prima, por quê?
O fado de Videirinha era fundado em documentos autênticos que o Padre Soeiro estudou. Todo o recheio histórico foi fornecido pelo Padre Soeiro. O Videirinha só pôs as rimas.
– Além disso, antigamente, prima, a história era perpetuada em verso e cantada ao som da lira…
(Queirós, 2002: 178)

Não nos detenhamos, por enquanto, no questionamento das relações entre História e Arte que o conteúdo da conversa enseja, mas tão só ao ponto de vista técnico-narrativo que o narrador adotará. Notemos que a focalização interna a que me referi acima agirá em dois momentos no excerto: num primeiro momento, sobre D. MariaMendonça, cujo gesto de elevar “as compridas mãos aos céus” é apenas recurso para exteriorização de seu pensamento interior: “Conhecer somente seus anais, desde que eles andavam repicados num fado!… O primo Gonçalo não se envergonhava?”, que provavelmente fora exteriorizado, já que Gonçalo lhe questiona o motivo da vergonha; num segundo momento, agirá sobre ele mesmo, cuja justificativa para acreditar no fado não é introduzida por ele, mas pelo próprio narrador. E, então, lhes pergunto: quem fala aqui? Decerto, o tempo verbal sugere que é a voz do narrador, mas a opinião que ele expressa não advém do pensamento e das crenças de suas personagens?

Certamente, a focalização interna, embora seja responsável pela emergência da subjetividade no discurso, não impede que o modo pelo qual ela é trazida à tona se realize objetivamente (vide os monólogos interiores de autores contemporâneos a Eça). Mas no caso desta Ilustre Casa, a focalização revela mais que a aproximação, a confusão não é só entre a fala do narrador e a fala da personagem, mas também entre posições ideológicas que parecem ambos compartilhar. E isso de fato está muito longe do cânone realista/naturalista, para quem o narrador está sempre num plano superior e distanciado de análise. Ademais, esta focalização vem acompanhada do enfraquecimento das teses deterministas, o que se pode verificar na contraposição de personagens como Pedro da Maia, d’Os Maias, por exemplo, e Gonçalo Ramires: notem quantas páginas são gastas para falar da educação romântica e religiosa que Pedro recebera, tudo para provar a determinância desta educação na sua fraca personalidade e no seu trágico destino. E quantas páginas, pergunto, o narrador gastará para falar da educação de Gonçalo? Poucas linhas.

O que quero com isto dizer não é que o narrador se coloque “como quem duvida, interroga e procura a verdade acerca de suas personagens como se esta não lhe fosse mais bem conhecida que as próprias personagens ao leitor” (Auerbach, 2004: 482), pelo menos não nesse narrador onisciente. Definitivamente, ele não está no mesmo plano do leitor. Mas se a sua posição é revelada e por vezes se imiscui, como pudemos notar, com a de sua personagem, significa que tudo é uma questão de posição diante da realidade do mundo que representa. Não é que a verdade de suas personagens não lhe seja mais bem conhecida que ao leitor, mas que a verdade poderia muito bem ser outra. Chegamos, assim, à mesma substância da crítica que se faz no romance não só à Literatura, mas também à História. Afinal, se a Literatura foi outrora pensada por Eça como Ciência, e se, em um segundo plano, é das relações com a História que A Ilustre Casa trata, por que a reflexão da posição do narrador na Literatura não seria também transferida para o narrador da História, uma vez que uma e outra partilhavam do objetivo comum de analisar positivamente, a posteriori, a realidade?

Ora, a hostilidade do historiador oitocentista em relação à Arte — e à Literatura, em especial— residia, em grande parte, na crença de que o estudo ideal da História seria aquele que, pela explicação dos fatos como dados a serem explicitados de maneira objetiva, não deixasse interferir a natureza inventiva da arte literária. Para esses historiadores, a melhor explicação seria aquela que descrevesse o mais imparcialmente possível um fato, determinado antes por leis gerais, que pela habilidade criativa do historiador. Contudo, o que a historiografia de hoje reconhece7 é que embora essa concepção se aplicasse aparentemente bem às ciências da natureza, é totalmente inadequada às ciências históricas. Isso porque o estudo das realidades históricas não se conjuga em um espaço de dimensões exatas e dedutíveis, mas em um espaço onde cruzam realidades sociais, humanas e culturais. Portanto, qualquer idéia de que o estudo da História é o estudo de uma entidade estável e bem definida, tal como as leis matemáticas, é uma ilusão. Isso significa que, como um estatuto discursivo, a História é menos uma afirmação que uma indagação sobre a verdade dos fatos humanos. Na descrição de um determinado fato, o historiador é antes o sujeito de sua enunciação que o observador de dados.

Nesse sentido, não há possibilidade de se fazer uma observação desinteressada, pois, ao interpretar qualquer coisa que seja, interpretamos à luz de nossos próprios interesses, desprezando e/ou ressaltando pontos que julgamos desnecessários ou relevantes. Como endossa Paul Ricoeur (1994), em Tempo e Narrativa, todas as nossas afirmações, descritivas ou não, se fazem dentro de uma rede freqüentemente invisível de categorias de valores, ou, em outras palavras, toda e qualquer ação verbal, mesmo aquelas que se propõem a realizar-se imparcialmente, são marcadas por juízos de valor. O historiador, como escritor que é, não trabalha com sua documentação e suas fontes num modo unilateral e distanciado de análise. Fontes e documentos não transferem o conhecimento do passado ao presente; trata-se antes de uma dupla articulação, na qual o olhar do historiador é o crivo pelo qual se dá a interação entre o que pensa e o que seus documentos lhe dizem, expressando uma subjetividade inerente ao uso da linguagem. Dessa forma, os fatos históricos, primeiramente enxergados como simples dados, no momento em que são relidos pelo historiador, são também reescritos. E é nesse processo de reescritura que a História, como a Literatura, passa a exibir uma configuração de valores, revelando a possibilidade de ser vista sob diferentes aspectos, e tornando compreensível que “os fatos não falam por si mesmos, mas que o historiador fala por eles, fala em nome deles, e molda os fragmentos do passado num todo cuja integridade é — na sua representação— puramente discursiva” (White, 1994: 141).

Assim, antes mesmo que a Ciência reconhecesse que “o ato individual de apropriação da língua introduz aquele que fala em sua fala” (Benveniste, 1989: 84), Eça já entrevia, com a Ilustre Casa de Ramires, a inviabilidade do “objetivo” diante da linguagem, que a partir do momento em que colocada em uso, é colocada igualmente a serviço das ideologias, dos valores, dos interesses e das posições políticas daqueles que a usam. E por isso mesmo, não se disporá, como no seu Primo Basílio, à revelação d’A Verdade; mas de uma verdade, marcada pela componente subjetiva que lhe é característica. A este respeito, sintomático será o episódio em que Gonçalo Ramires depara-se com José Casco, um homem a quem deixara— e dera a palavra—arrendar-lhe as terras, e que, contudo, proposta de maior quantia fizera com que o fidalgo faltasse com sua palavra e sua honra, provocando emJosé Casco uma ira, no mínimo, justificada. O narrador nos dirá:

Então de repente o Casco cresceu todo, no solitário caminho, negro e alto como um pinheiro, num furor que lhe esbugalhara os olhos esbraseados, quase sangrentos:
[…]—Fuja, Fidalgo, queme perco!… Fuja que o mato e me perco!
Gonçalo Mendes Ramires correu à cancela entalada nos velhos umbrais de granito, pulou por sobre as tábuas mal pregadas, enfiou pela latada que orla o muro, numa carreira furiosa de lebre acossada! Ao fim da vinha, junto aos milheirais, uma figueira brava, densa em folha, alastrava dentro dum espigueiro de granito destelhado e desusado. Nesse esconderijo, se alapou o Fidalgo da Torre, tremendo, arquejando.
(Queirós, 2002: 106.)

Contudo, passado já o ocorrido, e entrando no terreno da memória o fato, será o mesmo Gonçalo a conduzir a narrativa por caminhos outros ao transmitir o acontecido a outrem:

O Casco! O José Casco dos Bravais, bêbedo, rompendo para ele, sem o conhecer, com uma foice enorme, a berrar: ‘Morra que é marrão!…’ E ele na estrada, diante do bruto, de bengalinha! Mas atira um salto, a foiçada resvala sobre um tronco de pinheiro… Então arremete desabaladamente, brandindo a bengala, gritando pelo Ricardo e pelo Manuel, como se ambos o escoltassem, e ataranta o Casco, que recua, se some pela azinhaga, a cambalear, a grunhir…
— Hem, que te parece, Bento? Se não é a minha audácia, o homem positivamente me ferra um tiro de espingarda! […]
—Mas o Sr. Dr. disse que era uma foice!
Gonçalo bateu o pé impaciente:
— Correu para mim com uma foice. Mas vinha atrás do carro…
E no carro trazia uma espingarda.
(Queirós, 2002: 108)

O que subsiste de fundamental nos excertos acima é a transmissão do fato que, tornado história e passado a outrem, privilegia o caráter seletivo da memória, mas não sejamos eufêmicos: “seletivo de acordo com uma certa interpretação [e muito peculiar a Gonçalo…] daquilo que se recorda, com o investimento ideológico inerente a esse processo interpretativo” (Reis, 1986: 95). Gonçalo tem tempo para reelaborar o que foi vivido de acordo com suas percepções individuais e com aquilo que mais lhe convier. Nesse sentido, para além do disfarce de sua covardia em coragem, o que a atitude da personagem faz é reiterar que “só existem verdades no plural, e jamais uma só Verdade; e raramente existe a falsidade per se, apenas as verdades alheias” (Hutcheon, 1991: 146). É essa a consciência que de certa forma ficará implícita em todas as aventuras da personagem recontadas a terceiros, e todas identificarão sua capacidade de não só introduzir na natureza documental do fato, o inventado, mas também de atribuir ao inventado uma natureza documental que lhe garanta solidez, como sua explicação do aparecimento repentino da espingarda, questionado por seu funcionário, no caso de José Casco, nos pode confirmar.

Ora, mas em todo caso, a história não é aqui ainda História… E o que A Ilustre Casa revela é que, assim como os contadores de histórias podem modificar, silenciar ou mesmo eliminar certos acontecimentos do passado, os da História podem fazer o mesmo, como, aliás, o assunto de que tratara o excerto da conversa de Gonçalo e sua prima Maria, outrora deixado em suspenso, já fazia sugerir. É na afirmação de Gonçalo à prima acerca da possibilidade de conhecimento histórico pelo fado (que a propósito, anunciava a História(?) do cavaleiro Lopo Ramires, levantado do túmulo para combater os mouros na Guerra de Infanta — nada original a portugueses), e depois na posterior afirmação do narrador de que a História anunciada pela música de Videirinha era fundada em documentos autênticos estudados pelo Padre Soeiro, que se coloca em evidência não só as pretensões de representação autêntica da realidade histórica, como também a própria noção de que a matéria da História se dá em função da veracidade, enquanto a da Arte se dá em função da possibilidade. O que o fado e, sobretudo, a documentação autêntica que o ratifica representam, é aquilo que num período relativamente recente os historiadores Hayden White (1994), Georges Duby e Guy Landreau (1989) reconhecerão: que os tropos, como desvio de sentido a um sentido segundo, não são inerentes apenas ao discurso da Arte, mas a todo e qualquer discurso, inclusive o da História, que, como Padre Soeiro tão bem deixa entrever, “pressupõe o lirismo, a fantasia, a criatividade e a imaginação, caracteres essenciais do fazer artístico” (Duby e Landreau, 1989: 41).

E é tomado por esta segura compreensão que também o narrador Gonçalo, como o que o narra, sente-se autorizado à sua transgressão. Em princípio, de fato ele se acreditou capaz de recompor, na sua novela, a História de seus avós formidáveis – e História com H maiúsculo, sim. “E como eles ressurgiam sólidos e ressoantes! Era realmente uma compreensão segura daquelas almas afonsinas” (Queirós, 2002: 104). Os documentos estavam lá para o provar: o poema do Tio Duarte que o diga, já que havia contado em detalhes a aventura do avô Trutesindo. Mas, ora, o que este Gonçalo descobre, ao escrever sua novela, é que os problemas da História são semelhantes aos problemas da ficção e, enquanto narrativa que era, também precisava de artifícios de linguagem para gerar uma imagem inteiriça da realidade passada. Assim é, que ao lado do poema tão fidedigno do Tio Duarte – fidedignidade da qual ele começa a se questionar –, ele disporá de livros de Walter Scott e Herculano com os quais, afinal, haveria de dar forma – e forma rígida – à História que pretendia narrar. E é a preocupação com a equidade entre conteúdo e forma, e com a verossimilhança que se precisava garantir com os objetivos que tinha em mente ao historiar, o que provocará nele a incerteza: será que o poema do Tio Duarte não seria incongruente com a realidade que pretendia narrar? E é tão ciente da negativa que, Gonçalo, na transposição de seu poema-documento para a sua novela, o modificará:

[Gonçalo] Repassou lentamente o capítulo 2 que o não contentava. […] O tio Duarte, da Casa das Balsas, não era um Ramires, não sentia hereditariamente a fortaleza da raça – e, romântico plangente de 1848, inundara logo de prantos românticos a face férrea de um lidador do século XII, dum companheiro de Sancho I. Ele porém, devia restabelecer os espíritos do senhor de Santa Ireneia dentro da realidade épica. E, riscando logo esse descorado e falso começo de capítulo, retomou o lance mais vigorosamente, enchendo todo o castelo de Santa Ireneia duma irada e rija alarma.
(Queirós, 2002: 129)

O que o inventivo Gonçalo ensina, ao modificar o “descorado e falso começo” de sua novela apoiado sobre a verdade do poema(-documento? ou, quem sabe, monumento8) do tio, é mais ou menos aquilo que já ensinara à prima no episódio do fado: “Antigamente, prima, a história era perpetuada em verso e cantada ao som da lira…”(Queirós, 2002: 178). Melhor dizendo, é que para apresentar uma visão daquilo que realmente aconteceu, a própria História depende de convenções de narrativa, linguagem e ideologia, e como sistema cultural de signos, assim como a Literatura, é uma construção marcada pela ideologia que o historiador, tal como o escritor, ou até o fadista, como vimos, enquanto sujeito histórico, inscrevem na sua representação. E é por isso que Gonçalo se sentirá à vontade para rasurar todo o começo de seu capítulo, porque mais que um desejo, modificar a História era, no seu caso, uma imposição, uma vez que a reconstrução do passado dentro da realidade épica exigiria dele a verossimilhança interna e externa que esta realidade pedia.

A partir desse gesto não é somente o discurso provado pelo documento histórico que é adulterado, mas a própria noção de autenticidade e rigor do documento: se outrora pensou que não importava quem lhe houvesse contado que “D. Sebastião morreu em AlcácerQuibir… São os fatos. É a história” (Queirós, 2002: 95); agora, após o percurso literário que sua novela propicia, se dá conta de que a História, mesmo que se pretenda oficial e que os documentos lhe provem a oficialidade, também tem sua pitada de cor. Não à toa é que duvidará mesmo daquela sua reconstrução sólida e segura dos seus avós formidáveis:

Se ao menos o consolasse a certeza de que reconstruíra com luminosa verdade o ser moral desses avós bravios… mas quê! Bem receava que sob desconsertadas armaduras, de pouca exatidão arqueológica, apenas se esfumassem incertas almas de nenhuma realidade histórica!… até duvidava que sanguessugas recobrissem, trepando num charco, o corpo dum homem e o sugassem das coxas às barbas, enquanto uma hoste mastiga a ração!…
(Queirós, 2002: 257)

A vingança do bravo Trutesindo, antes pensada nítida e irrecusável, terá sido realmente praticada? Não será incongruência? Decerto, a este Gonçalo não cabe a coragem, como aquela que tomou Raimundo Silva, a conhecida personagem saramaguiana, que acrescenta um “não” na sua História do Cerco de Lisboa (1989), passando de revisor de textos a autor da História; porque embora este Gonçalo realmente lamentasse que seu avô Trutesindo “não matasse outrora o rival, no fragor da briga, com uma dessas cutiladas maravilhosas e tão doces de celebrar, que racham o cavaleiro e depois racham o ginete, e para sempre retinem na história!” (Queirós, 2002: 247), ele não a modifica, ao menos não no que concerne ao escopo central. Contudo, seu questionamento traz em si um ônus semelhante ao que a negativa do romance saramaguiano engendra: “o de reestruturar o discurso em consonância com a modificação realizada” (Roani, 2007: 59). Ademais, ao transpor as realidades e temporalidades do poema para a sua novela, já não havia instaurado um “não” em sua História? Já não havia lhe modificado ao transpor a realidade passada do poema para a realidade presente de sua escrita?

É uma forma de capturar o tempo passado que se verifica aqui, mas de uma maneira diferente porém, pois esta capturação vem acompanhada de uma reorganização sob a perspectiva do presente. É uma idéia de passado determinada pela vontade de quem se propõe a recuperá-lo, como forma de fundir discursos de épocas distintas sob um mesmo chão, que é o chão da escrita. Contudo, essa fusão no âmbito temporal, acompanhada também, como lembra Duarte (2004), no âmbito estrutural, pela fusão de estruturas narrativas distintas – romance, novela histórica, poema épico –, antes de digressão ou infração do narrador e da personagem contra a Verdade, é a própria condição para que este Gonçalo narrador, como aquele que o narrara, cometa o seu pequeno delito; tomado pela consciência polifônica das diversas vozes e diversas escritas que se cruzam em sua escritura, ciente de que tudo é uma questão de posição diante da realidade do mundo que representa, afinal descobrira que a recuperação do passado, antes de um compromisso com a realidade, é moldável pela subjetividade de quem o reconstrói.

Dessa sorte, mesmo que a atitude de Gonçalo não descortine, como no “não” daquele Raimundo Silva, uma atitude de subversão sobre o que até então estava estabelecido no imaginário português; como no romance saramaguiano, ela acaba por tornar as estruturas míticas que por tanto tempo governaram a História Portuguesa, tão cheia de Trutesindos, “não como uma pré-condição do texto [que se deveria negar] , mas como emergentes do texto – emergindo do texto, ele próprio como o rendezvous intertextual de uma textualidade carregada de tempo” (Bann, 1994: 99). O que quero com isto dizer não é que a imagem de eternos cavaleiros, que em alto-mar ou em terra, avultavam sempre na História de Portugal “pelo heroísmo, pela lealdade e pelo nobre espírito” (convenhamos, sempre algo como uma pré-condição textual; vide a já citada Crônica dos Godos), seja desconstruída. Não é que a fiel e real imagem portuguesa seja levada ao espelho para se dar conta do recalque que a fez por tanto tempo pensar ser grande, quando na verdade era pequena. Como já disse aqui, não é em termos de verdade e falsidade que esta história poderá se conjugar. É como marca de textualidade que esta imagem emergirá, uma textualidade definitivamente histórica e carregada de favores e intenções por parte daqueles que ao longo do tempo a construíram, e que não deve ser negada, apenas reconhecida. Afinal, o que este Eça percebe, e o percurso escritural de Gonçalo o evidencia, é que o próprio impulso realista de quebrar o mito, de desromantizar a História, ao buscar aderir-se ao fato exata e fielmente do modo como ocorreu, já trai seu propósito na tentativa mesma da descrição, pois revela o insucesso já (des)esperado de uma iniciativa que tenta, na fidedignidade e na verossimilhança, desculpar-se e iludir quanto à sua natureza eminentemente imaginativa e ficcional.

Ademais, do mesmo modo que nem tudo o que reluz é ouro, também nem tudo o que é dourado será bijuteria… E até a covardia e o medo que Gonçalo tanto disfarçou em suas (re)invenções da História (e se digo re, é porque ainda a acredito como invenção), uma hora chega ao fim. Assim será que se, em sonho, receberá o doce neto, as armas de seus avós para vencer a sorte inimiga, também na vida as receberá de bom grado: para espanto do leitor, passando da covardia à coragem, Gonçalo enfrentará um valentão que havia lhe insultado várias vezes, e deixará ele e o comparsa – que, na tentativa de defender o amigo, quase acertara-lhe um tiro de espingarda –, em poças de sangue. Ora, o que este Eça percebe é aquilo que Machado sempre lhe cobrara: a vida não tem apenas seu lado negro, decadente, e o que faz do romance, romance, não é a contraposição ao épico, pela negação dos valores altivos (e só altivos) daquele herói cujo Ulisses foi símile representante (valores os quais, através dos fracos e decadentes Padres Amaros, Amélias, Luísas, Eça negou); mas a compreensão do ser humano em sua possibilidade de inteireza, com seu bem e com seu mal, em sua covardia e em sua coragem, como neste Gonçalo, apesar de inconcluso, muito mais inteiro que o épico Ulisses, porque mutável dentro de um destino sobre o qual é ele que tem o poder.

É por isso que disse acima que a intenção não será negar as estruturas míticas (e românticas) que por tanto tempo governaram a imagem que os portugueses fizeram de si mesmos. Porque modificar o tempo ou a História não é só artifício de Gonçalos, ou de Raimundos, mas, neste vasto mundo, artifício humano, como a transmissão da empresa heróica de Gonçalo (finalmente) Ramires pela boca do povo, aliás, deixara sugerir:

Pois o povo não se arreda! E a mostrar sangue, no chão, e as pedras por onde se atirou a égua do fidalgo… E agora até contam que foi uma espera, e que desfecharam três tiros ao fidalgo, e que depois adiante no pinhal ainda saltaram três homens mascarados, que o fidalgo escangalhou… – Eis a lenda que se forma – declarou Gonçalo.
(Queirós, 2002: 238)

“Eis a lenda que se forma”, diz Gonçalo. Eis a lenda que se faz História, diria eu. E ratificada pelo documento, senhores, já que, no dia seguinte, é a mesma lenda que se anuncia nos jornais de Lisboa, de Porto, de Oliveira e da vistosa Vila Clara.

Mas não nos embrenhemos no terreno injustificado de a combater em busca da verdade! Lembremos que Deus após ter criado o homem à sua imageme semelhança, e designado o seu domínio sobre a terra e sobre o mar, criou o português. E, contra essa verdade, Musa nenhuma nos defenderá! Afinal, o que tanto insisti aqui não foi que a verdade não pode ser concebida senão enquanto existência plural? Além do que, é aquilo que o narrador nos diz acerca deGonçalo Ramires, nas palavras finais do romance, comparado a Portugal:

Que importa que tenha defeitos, que tenha culpas, que esqueça mesmo o dever, que ofenda mesmo a lei? Mas quê! É amorável, generoso, dedicado, serviçal, sempre com uma palavra doce, sempre com um rasgo carinhoso… E por isso todos o amam, e não sei mesmo, Deus me perdoe, se Deus também o não prefere…
(Queirós, 2002: 284)

Ora, já disse antes que há invenções literárias (e também históricas) que se impõem à memória mais pela amabilidade da palavra que pela apenas desejada exatidão. Mas se a exatidão é apenas desejada, pergunto eu: que importa que estas Histórias de Portugal com H maiúsculo tenham suas robinsonadas, suas fantasias, ofendam a verdade? Mas quê! A verdade não é plural? E por que ignorar a odisséia marítima de mítica e mística aventura de um sonho sonhado junto português? Portugal não poderia ter mais instigante resposta: que Gonçalo seja sua personificação. Porque é a partir da “identificação alegórica Portugal-Gonçalo” (Da Cal, 1961), que se revela a constituição identitária da nação, inseparável dos mitos e das romantizações, por sua vez inseparáveis da gênese da História, pois dela são elementos fundacionais. Buscar compreender o discurso histórico e a arte literária dessa forma é compreender que a retidão de qualquer representação narrativa, seja ela portuguesa ou não, como lembra Stephen Bann (1994: 23), “é uma invenção retórica; e que a invenção de histórias é a parte mais importante da autocompreensão e da autocriação humana”. Além do mais, lembremos, estas (H ou h?)istórias são amoráveis, sempre com palavras doces, com religiosidade… E Deus de fato as prefere! Vieira não está aí para o provar?

Astrologia e Manuscritos Medievais Judaicos: Interfaces

 
Analisam-se os manuscritos astrológicos judaicos da Idade Média, rica fonte para o melhor entendimento da cultura medieval e da história da ciência. Em um primeiro momento, será feita a contextualização da astrologia na Europa cristã, para, em seguida, entender a relação dos judeus da Idade Média com a interpretação das supostas mensagens dos astros. O resultado do interesse pela astrologia será a elaboração de textos variados sobre o tema, muitos deles desconhecidos até o presente. Antes da conclusão, serão examinados três guias astrológicos: o Ms. Laud Or. 282 e Ms. Laud Or. 31 0, ambos da Bodleian Library, e El libro conplido en los iudizios de las estrellas, de Abenragel. Os conhecimentos aqui sistematizados contribuem para o melhor entendimento dos Estudos Judaicos e Medievais, abrindo novas perspectivas de pesquisa para a Crítica Textual, a Filologia Românica e a História, entre outras áreas do saber.

AGÁLIA no 101 / 1º Semestre (2010): 35-55 / ISSN 1130-3557 / URL: http://www.agalia.net

1. Introdução

O interesse em desvendar as mensagens dos astros está presente em diversos manuscritos (mss.) medievais. Esses textos astrológicos são compostos por ferramentas e princípios da astrologia, quadros e textos re- lativos à influência e à natureza dos planetas, assim como horóscopos, isto é, mapas dos céus que fornecem respostas a problemas dos mais variados tipos. Ao contrário da astrologia atual, a medieval permeava vários níveis da sociedade, fazendo parte da visão de mundo dos indivíduos: previsões, tipos de personalidade, destinos individuais, amor, poder, negócios, cos- mologia, alquimia, agricultura e medicina sofreriam a influência dos astros (Page, 2002).

Há muitas obras que tratam da astrologia medieval no Ocidente e tantas outras que analisam mss. medievais judaicos sobre os mais diversos assuntos —filosofia, cabala, medicina, astrologia, geografia— como a tão completa Sirat (2002). Mas as informações sobre mss. medievais judaicos que tratam especificamente de astrologia encontram-se pulverizadas em textos variados, dificultando uma perspectiva coesa e clara do objeto em questão. Ademais, as análises encontradas sobre astrologia medieval são, em geral, sobre a cristã ou a árabe, porque há, efetivamente, poucos trabalhos originais escritos por judeus. Romano (1992), porém, ao analisar 30 tra- balhos astrológicos/astronômicos de grande importância científica, revela que, em 74% deles, judeus tiveram papel central em sua elaboração, seja traduzindo, seja transcrevendo, o que estimulou o início da pesquisa aqui exposta. É relevante, então, para as várias subáreas das ciências humanas e sociais lançar um olhar que dê exclusividade ao problema.

Para o bom entendimento da discussão, este texto foi dividido em três partes, arrematadas por considerações finais. Na primeira, apresenta-se a astrologia na Europa cristã medieval, com a inserção dos autores das obras astrológicas judaicas em um contexto maior. Na segunda, tenta-se entender a relação entre judeus europeus e astrologia medieval. Já na ter- ceira parte, apresentam-se três extensos mss. medievais judaicos que tra- tam especificamente de astrologia: El libro conplido en los iudizios de las strellas [ Libro conplido ] , com versões em bibliotecas variadas, De magia (ou Manuscrito Laud Or. 282 [ Ms. 282]) e o parcialmente editado por Ge- rold Hilty, em 2005, o Ms. Laud Or. 310 [ Ms. 310]), os dois últimos da Bodleian Library, em Oxford, Inglaterra.

Decidiu-se utilizar o termo “judaicos” para os mss. de modo bas- tante amplo: a questão de autoria na Idade Média é bastante problemáti- ca e não se tentará esclarecê-la no momento. Assim, “mss. judaicos” aqui são aqueles copiados, redigidos, traduzidos e/ ou compilados por um ju- deu. Tampouco há a preocupação em se fazer qualquer julgamento de valor em relação à (pseudo)cientificidade da astrologia. Entendida co- mo uma ciência pela maioria dos homens cultos da Europa medieval, só passou a ser contestada cientificamente a partir do século XVII, com a tomada de conhecimento das ideias de Isaac Newton1 . Ciência, arte ou farsa, faz parte da evolução da ciência tanto ocidental quanto oriental, sendo um ponto de interseção entre religião e ciência, cultura erudita e popular, literatura e cotidiano (adaptado de Kieckhefer, 1992).

Esta pesquisa bibliográfica permitirá a cobertura de dados que se encontram, como já dito, muito dispersos. As informações das fontes se- cundárias às quais se teve acesso foram cotejadas cuidadosamente na ten- tativa de se diagnosticar e evitar possíveis incoerências. A pesquisa documental servirá apenas de apoio à bibliográfica e se restringirá à análise direta dos seguintes materiais: o microfilme e a fotocópia do De magia e a fotocópia do Ms. 310, adquiridos na Bodleian Library, a edição do De magia de Duchowny (2007) e a edição do El libro conplido de Hilty (1954 e 2005). Estes materiais carecem de mais tratamento analítico e/ ou crítico. Espera-se, assim, que o conhecimento da astrologia medieval judaica não se limite mais aos poucos escritos já conhecidos, e que novos estudos sur- jam para melhor se entender a sociedade medieval e a história da ciência.

2. Astrologia e Europa cristã

Na Idade Média, astrologia e astronomia chegam da Grécia ao Oci- dente de forma fragmentada, através de textos tecnicamente pouco refina- dos e sempre condenados pela Igreja católica, conforme Marshall (2006), e também pelo Judaísmo tradicional, como se verá na próxima seção. No Oriente, a astrologia grega foi transmitida ao mundo árabe, chegando, através dele, à Península Ibérica, por volta do final do século X. Autores como Tester (1987) afirmam que a astrologia praticamente não existia an- tes do século XII na Europa Ocidental, tendo como base o número reduzi- do de mss. que chegaram até o presente sobre o tema. Mas o que aconteceu, de fato, é que, a partir do século XII, o interesse pela astrologia, já bem instalada nas crenças e nos costumes ocidentais e, muito provável, sempre presente na tradição oral, cria uma demanda por textos astrológi- cos. A astrologia, então, adquire grande ímpeto com a redescoberta e a tra- dução do grego para o latim de textos preservados pelos árabes e de textos árabes relacionados a ela, e também à astronomia e à filosofia. Ao final desse século, os principais textos astrológicos da Antiguidade estavam dis- poníveis na Europa. Segundo Page (p. 9, itálicos nossos), “Scholars from across Europe travelled to centers in Spain, Sicily and the Middle East where —often in collaboration with Jews— they translated works from Arabic into Latin and returned home in possession of a body of scientific knowledge which included astrological, alchemical and magical texts”.

Duas figuras da Antiguidade grega dominaram a Ciência, ao longo de toda a Idade Média: Aristóteles e Platão. A cosmologia de Aristóteles, menos ou mais adaptada daquela de Platão, resumia-se na Terra, fixa e estática, inseri- da no centro do universo e o mundo sublunar, formado pelos quatro elemen- tos —água, terra, fogo e ar—, sujeitos às forças de geração e decadência. Ao redor, as esferas celestes giravam em um movimento circular perfeito.

Na cultura medieval cristã, a classificação do conhecimento huma- no evidencia a importância dada ao entendimento do céu e de seus com- ponentes. O conhecimento medieval estava organizado em dois grandes grupos de disciplinas, agrupadas no Trivium (gramática, retórica e dialéctica) e no Quadrivium (aritmética, música, geometria e astronomia. Esta última, segundo Carvalho [p. 21], “com suas profundas infiltrações as- trológicas”). Em um testemunho de 1504, D. Pedro de Meneses profere, na abertura das aulas do Estudo Geral em Lisboa2, a Oração da Sapiência. Nela, o autor faz referência à astrologia, uma das disciplinas minis- tradas no Estudo Geral, na época, como a arte que “previne com êxito seguro o futuro próspero ou infeliz, providência esta com que se podem facilmente evitar os males patentes, e esperar os bens com mais segu- rança” (Carvalho 132). Um adágio, que corria na afamada Escola de Me- dicina de Bolonha, no século XIII, também é uma pista para o papel da astrologia na sociedade medieval: “Um doutorado sem astrologia é co- mo um olho que não pode ver” (Hutin 107). Em muitas cortes da Europa Medieval, os governantes recebiam aconselhamento astrológico de médicos e membros da corte e, conforme Marshall (2006), por volta do século XIV, todas as autoridades (papas, bispos, reis, príncipes) tinham seus astrólogos. O uso frequente da astrologia pode ser evidenciado por vários manuscritos medievais que chegaram até os dias de hoje. Ela era de grande utilidade para a marcação do tempo, já que os almanaques, os calendários e as ferramentas disponíveis —relógios de sol, ampulhetas, velas, clepsidras— apresentavam limitações.

Segundo Page (2002), é difícil saber o quão abrangente foi a dis- seminação das ideias astrológicas. O hábito usual de leitura em voz alta teria aumentado a transmissão das crenças e práticas astrológicas, mas o mais provável é que a prática da medicina astrológica tenha sido a forma mais comum de exposição a essa área do conhecimento. Na medicina as- trológica, o corpo humano reflete o universo. Assim, se o microcosmo do corpo do homem estava relacionado com o macrocosmo, a ideia da influência dos astros sobre os humanos seria um passo muito natural: temperamentos e desordens corporais estavam associados a planetas e signos zodiacais individuais, o que poderia ser verificado pelos astrólo- gos. As técnicas astrológicas também permitiam que os médicos des- cobrissem o melhor momento para a administração de remédios, sangramentos, cirurgias e o próprio desenvolvimento das doenças (Ed- son e Savage-Smith, 2004).

A astrologia era dividida em duas partes principais: a mundana (também chamada de geral ou natural) e a judicial. A primeira dizia res- peito às influências celestes sobre os fenômenos naturais, tais como o tempo e a previsão de acontecimentos em geral. A segunda preocupava-se com a vida do indivíduo e o momento certo para realizar alguma ação, sendo vista com suspeita pela Igreja católica, pois ameaçaria o conceito de livre arbítrio da divina providência de Deus. Uma resposta comum a essa crítica por parte dos astrólogos era a de que a astrologia preparava os seres humanos para eventuais desastres, dimimuindo o seu impacto. Ademais, apenas os corpos, paixões e multidões eram regidos pelas es- trelas, e não a razão, as almas e o livre arbítrio dos indivíduos. Apesar de os autores utilizarem os termos “astrologia” e “astrono- mia” indistintamente ao longo de toda a Idade Média, a diferença entre eles era definida (Santos, 2001; Marshall, 2006). Esta não é a opinião de Tester (1987) e tampouco de Costa (2002): para o último, poucos perce- biam a diferença e Hugo de São Vítor (c. 1096-1141) seria uma das ex- ceções, conforme se vê em obra datada de 1127:

A astronomia e a astrologia se diferenciam pelo fato de a astronomia ter derivado o seu nome da lei dos astros, a astrologia do discurso sobre os astros. De fato, nomía significa lei e logos discurso. E assim, a astronomia é a ciência que discute a lei dos astros e a revolução do céu, investigando as regiões, as órbitas, os movimentos, o raiar e pôr-se das estrelas e as razões do nome de cada uma. A astrologia, por sua vez, considera os astros em seu influxo sobre o nascimento ou a morte ou qualquer outro evento, influxo que é em parte natural e em parte supersticioso. Tal influxo é natural sobre a complexão dos corpos, os quais variam de acordo com o ritmo dos corpos superiores, como é o caso da saúde, doença, tempestade, estiagem, fertilidade e esterilidade; mas esse influxo é supersticioso com relação às coisas contingentes ou que dependem do livre-arbítrio. (Hugo de São Vítor. Didascálicon. Da arte de ler, Livro II, cap. 10, apud Costa (491); itálicos no original.)

Os judeus, integrantes da sociedade europeia medieval e sob o jugo da força dominante da Igreja católica, também se interessam pela astrologia, utilizando-a como ferramenta para o dia a dia (medicina) e para interpre- tações subjetivas (filosofia). Colaborarão, também, para a vasta dissemi- nação das ideias astrológicas, sugerida pela popularidade dos mss. que as comportavam e que circularam na Idade Média.

3. Astrologia e judeus

No século XII, momento do ápice do interesse pela astrologia, já presente no século anterior, os judeus de terras cristãs viviam em dois am- bientes diferentes (Sirat, 2002): norte da Europa, com uma forte tradição oral (são os judeus asquenazitas) e Europa do sul (Provença, Bizâncio e penínsulas ibérica e itálica), onde começaram o estudo das ciências em ge- ral. Vários astrólogos judeus serviram a reis e papas nas cortes cristãs me- dievais: Judah b. Moses ha-Kohen na corte de Afonso X de Castela (1254-1284), Jacob Alcorsono e Crescas de Vivers nas cortes de Pedro IV (1336-1387) e de Joan I (1387-1389) de Aragão, Abraham Zacuto (1450- 1510) na corte de Manuel I de Portugal (de 1494 até 1497), Jacob b. Ema- nuel Provinciale (Bonet de Lattes), médico e astrólogo dos papas Alexan- dre VI e Leo X. Ainda no reinado de Afonso X, o astrólogo Isaac ben Said estabeleceu as tábuas astronômicas denominadas Tábuas afonsinas3.

Mas, houve uma astrologia especificamente judaica? Sirat (1990) responde negativamente à pergunta4. Como os judeus estudiosos partici- pavam do progresso de várias ciências em geral — matemática, astrono- mia, medicina —, contribuíram, consequentemente, para o progresso da astrologia. Para a autora (Sirat 97),

Jewish astrologers adopted astrology without modifying any basic part ofthe system because oftheir religious ideas. Within the astro- logical tradition they chose what best suited their intentions and they sometimes made a personal application ofthe accepted prin- ciples; what was Jewish was the use ofastrology in systems ofJe- wish philosophyand the use ofastrological arguments concerning certain questions; astrologyitselfremained a universal science.

É fato que há poucos manuscritos medievais sobre astrologia escrito por judeus e daí resulta o questionamento anterior. Mas entender o papel dos judeus na sociedade medieval é importante porque vários tratados astroló- gicos escritos em árabe, principalmente nos séculos IX e XI, foram traduzi- dos por judeus para o hebraico e para as línguas vernáculas da Europa. Ademais, ao longo de toda a Idade Média, a astrologia foi praticada pelos judeus, tanto profissional quanto cientificamente, podendo ser citados vá- rios estudiosos e filósofos versados em astrologia: S. Gaom, S. Donnolo, S. b. J. ha-Nagib, S. ibn Gabirol, I. Daud, Levi ben Gershon (Gersônides) (Encyclopaedia Judaica [ EJ] , 1971, v. 2).

Ainda de acordo com a EJ (1971, v. 3, 787-807), a astrologia não é mencionada explicitamente na Bíblia, mas os profetas tinham consciência das práticas dos “observadores de estrelas”. Vários textos judaicos criticam a crença dos judeus na astrologia, afirmando que se trata de uma ilusão (Os Oráculos sibilinos, o primeiro Livro de Enoch, o Livro dos Jubileus).

Maimônides, autoridade rabínica de enorme prestígio entre os ju- deus, também rejeitava a astrologia, referindo-se às crenças astrológicas como superstições vãs e indignas de serem chamadas de ciência, mesmo que o Talmud5 e os Textos Midráshicos6 indiquem a influência das estre- las sobre os seres humanos. Apesar da autoridade de Maimônides, suas palavras não influenciaram todos os escritores subsequentes a ele. Além deste importante pensador, outros se posicionaram em relação à astrolo- gia, principalmente através de comentários de obras já existentes: Abraham bar Hiyya ( circa 1065-1136), que demonstrava atitude positiva em relação à astrologia, Judah Halevi ( circa 1075-1141), ambíguo em relação a ela e Hasdai ben Judah Cresca ( circa 1340-1410) e seu discípulo Joseph Albo ( circa 1380-1444), com atitude cética. Outro nome a ser citado é o de Abraham ibn Ezra (1089-1164), reputado estudioso de astro- logia em sua época, que teve a maioria de seus textos traduzidos para o latim no final do século XIII. Seu papel foi importante para a difusão e aceitação da astrologia entre os pensadores judeus e não-judeus, não ape- nas como uma ciência legítima, mas também como uma chave importan- te para os segredos do cosmos (Langermann, 1996).

Apesar de muitas vezes condenada, afirmava-se que a astrolo- gia tinha origem celestial, tendo sido revelada à humanidade por an- jos rebeldes. A maioria dos sábios talmúdicos acreditava no papel decisivo dos corpos celestiais na determinação dos eventos huma- nos, no mundo sublunar. Em vários pontos do Talmud, afirma-se que todo ser humano tem um corpo celestial (mazzal), em especial uma estrela-guia da concepção e do nascimento (Shabat, 53b e Bava Kamma 2b): “Not only human beings are influenced by the stars; but there is not a blade of grass that has not its star in the heavens to strike it and say to it: grow!” (Nedarim 39b e Bava Metzia 30b apud EJ (1971, v. 3, 789).

Outras obras e pensadores também dão legitimidade a esse saber tradicionalmente condenado. Rava (ou Abba ben Joseph bar Hama, circa 280-352), por exemplo, afirmava que “A vida, as crianças e a subsistência – estas coisas não dependem do mérito, mas das estrelas” (Mo ́ed Katan 28a, cf. EJ, 1971, v. 3, 790). O antigo texto Sefer Yetsirah ( Livro da Formação ) é um tratado rabínico, escrito entre os séculos II e VI da Era Comum, de autor desconhecido, sobre filosofia cabalística. Nele, é mencionada a divisão do zodíaco em doze constelações, correspondentes aos signos zodiacais, aos doze meses do ano e às doze consoantes simples do hebraico. Os signos eram designados, também, de acordo com certas partes do corpo e as doze constelações representariam as doze tribos judaicas. Contém várias passagens astrológicas que tratam da relação de sete consoantes hebraicas com sete planetas e os sete dias da semana. Podem ser citados também o Sefer Razi ́el ha-Malakh ( Livro do anjo Raziel) e o Zohar (Livro do Esplendor) , este último um conjunto de livros de autoria controversa, encontrado pela primeira vez no século XIII, na atual Espanha. É o texto principal da literatura cabalística, composto por várias seções que incluem pequenas afirmações midráshicas, longas homilias e discussões sobre assuntos variados. Mesmo empregando imagens e terminologia astrológica, retira a relevância da astrologia, entendendo as crenças astrológicas como sem importância ( EJ, 1971, v. 2).

Conforme Marshall (2006), a astrologia esotérica judaica associa cada planeta a uma das dez Sefirot (atributos divinos), cujas relações são representadas na Àrvore da Vida. Pode-se encontrar uma descrição detalhada da influência dos planetas e das constelações em obras judaicas como no Tsedah la Derek de Menahem ibn Zerah e no ‘Abbi‘ah Hidot de Abraham Hamawi. No entanto, conforme a EJ (1971, v. 16, 689), entende-se que

O judeu justo está acima da sina (constelação ou planeta) e não precisa temer nenhum destino ruim. Para legitimar esse ensinamento, o trecho “não se desanime com os signos dos céus; porque o descrente se enfraquece diante deles” (Jer. x. 2) é geralmente citado, sendo contrário à religião judaica consultar as predições dos astrólogos ou de depender deles.
( Deuteronômio , xviii, 11)

A crença de sábios como R. Akiva (ou Akiva ben Joseph, circa 17-137) e Mar Samuel (ou Samuel de Nehardea circa 177-257), de que os judeus seriam imunes às influências planetárias pode justificar o fato de o zodíaco não ser mencionado no Talmud ( EJ, 1971, v. 16, 1491). Como se pode ver, os sábios não tinham uma opinião consensual e tem-se aqui um complexo problema teológico e religioso que ultrapassa o escopo deste artigo7.

4. Manuscritos medievais judaicos sobre astrologia

Segundo Sirat (2002), há pelo menos 40 mil manuscritos medievais escritos em caracteres hebraicos, em línguas como o aramaico, o hebraico, o árabe, o ídiche, e as vernáculas europeias. Muito da produção judaica literária e científica está em língua árabe, porém em caracteres hebraicos. Apesar das perseguições e expulsões contínuas dos países europeus, principalmente a partir do século XIII, os principais tradutores das obras árabes sobre astrologia (e também astronomia) eram judeus, colaborando para o estudo das ciências em geral. Também, em colaboração com cristãos, compilaram numerosas tábuas astronômicas.

Os estudiosos medievais dispunham de teorias e convenções relativamente bem definidas a respeito da tradução de textos eruditos ou científicos. Nos três grupos religiosos discutiam-se os méritos de um estilo de tradução literal versus os de uma tradução mais livre. Este intercâmbio cultural exigia um elevado nível de interação social que na prática se consubstanciou em grupos inter-étnicos de tradutores que vertiam textos árabes para o latim (séc. XII) ou para o castelhano (séc. XIII). No século XII, os grupos consistiam em dois homens: frequentemente um judeu, que lia o original em árabe e o traduzia em voz alta, palavra por palavra, para a língua vernácula e o seu parceiro que, em seguida, escrevia a tradução de cada palavra em latim.

A seguir, serão apresentados, sem o objetivo de alcançar a exausti- vidade, três guias astrológicos, suas características gerais e as edições conhecidas. Espera-se que estes exemplos sirvam para ilustrar a comple- xidade e a riqueza dos mss. astrológicos judaicos da Idade Média para diversas áreas do saber.

4.1. De Magia

O Ms. 282 é composto de 416 fólios cujo original se encontra na Bodleian Library. Suas sete partes tratam de subtemas da astrologia: os corpos celestes, a influência destes sobre os seres humanos, a escolha do momento para a realização de certas ações, etc, de acordo com o trecho inicial do próprio original (fólio 1 v, linha 20 até 2r, linha 31).

Conforme o detalhado exame de Duchowny (2007), apesar de a língua ser o português arcaico da primeira metade do século XV, os carac- teres utilizados são os hebraicos semicursivos também do século XV. O uso de um alfabeto para representar uma língua diferente é chamado de “aljamia” (Duchowny, 2007). A mesma autora realizou a edição paleográfica dos 84 fólios iniciais do códice outrora inédito, tendo feito a sua trans- crição para os caracteres latinos. Ela passa a chamá-lo de De Magia devido a uma nota marginal do século XVII do próprio manuscrito. A seção que se inicia no fólio 85 continua inédita e foi redigida por outro punho.

Não há certeza sobre a autoria do De Magia: mesmo com a citação do nome de Juan Gil de Burgos como copista em seu colofão8, não foram encontrados dados suficientes que comprovassem tal afirmação. De acordo com Sá (1960), o De Magia seria uma tradução de uma cópia do Lybro de Magyka, este último possivelmente em catalão, do qual se desconhece o paradeiro. Para Silva (1924: 47), não pode restar dúvida, pelo que se tem exposto, que o “grande livro de astronomia”, tantas vezes citado pelo rei D. Joan I, era o De Magia e foi escrito por João Gil de Castiello, fiel da escrivania do rei de Aragão, no meado do século XIV. Esta não é a opinião de González Llubera (269): “Juan Gil’s participation does not appear to have gone beyond the exercise of his professional skill as a copyst”, concluindo que, o De Magia “(a) is not the a[s]trological compilation commissioned by Peter the Ceremonius, but does represent the Catalan one translated by Master Alfonso in 1351-2; and (b) that its attribution to Juan Gil probably arose from the mention ofthe latter in the colophon ofthe codex copied by him”.

Segundo Hilty (1982: 262), em relação ao De Magia, “da obra atribuída a João Gil não existe tradução latina e dos pouquíssimos manuscritos conservados deve deduzir-se que a obra estava pouco divulgada.” Entende-se aqui como “manuscritos conservados” o Ms. 282 da Bodleian Library e sua tradução em castelhano do século XV, o Ms. 5-2-32, cuja terceira parte se encontra na Biblioteca Colombina9.

Se o De Magia é uma tradução que tem como texto de origem um texto em catalão em caracteres latinos, o tradutor só poderia ser pelo menos bilingue, que dominava tanto o hebraico quanto o português. No entanto, a tradução poderia ter sido feita também por duas pessoas: um traduzia em voz alta do catalão para o português, enquanto o outro, certamente um judeu, copiava em caracteres hebraicos o que ouvia em português (Hilty xxxviii).

Apesar da análise e da edição de Duchowny (2007) e da existência de alguns outros trabalhos, o texto, de inegavél valor para a filologia portuguesa e para o melhor entendimento dos sistemas aljamiados, demanda a edição do segundo punho e de estudos de seu conteúdo e língua.

4.2. El libro conplido en los iudizios de las estrellas

El libro conplido en los iudizios de las estrellas é a tradução do tratado enciclopédico de astrologia elaborado na primeira metade do século XI pe- lo astrólogo árabe Abenragel (ou Ibn Abi-l-Riyal). Esta tradução, datada de 1254, foi feita por Yehuda b. Moseh ha-Kohen e outros tradutores do escritório afonsino de traduções, a mando do rei Afonso X (Ordóñez de Santiago, 2006; Vicente García, 2002). A cópia da tradução em castelhano da Biblioteca Nacional de Madrid ( Ms. 3065 ), datada do século XIII, foi editada por Gerold Hilty em 1954 (ver Hilty, 1954). É composta de cinco partes apenas, faltando as três últimas, tendo 230 fólios, letra gótica e ornamentação comuns a outros textos afonsinos, conforme descrição de Domínguez Bordona (1931). Em 2005, G. Hilty edita as partes faltantes do Ms. 3065 (ver Hilty, 2005), baseando-se nos seguintes manuscritos: 253 da Biblioteca de Santa Cruz de Valladolid, Laud Or. 310 da Bodleian Library, B 338 do Arquivo Capitular da Santa Igreja da Catedral de Segóvia e o Barb. Lat. 4363 da Biblioteca Apostólica Vaticana. Há outras cópias do ms., inclusive em latim, o que aponta para sua ampla difusão, principal- mente no Renascimento.

Hilty (1982), ao analisar notas interlineares encontradas no Livro cunprido, fruto de uma correção do texto feita pelo “emendador”, tira algumas conclusões que poderiam colaborar para o melhor entendimento das questões relacionadas à autoria dos mss. Apesar de no prólogo do Libro cunprido haver referência a apenas um tradutor, Yehuda b. Moshe ha-Cohen, a tradução foi feita por pelo menos dois tradutores, utilizando-se uma técnica comum da época do Rei Afonso, que reunia um tradutor judeu e outro cristão. O judeu, conhecedor do árabe, faria uma tradução oral do texto, e o cotradutor cristão a anotava por escrito. Ademais, o co-tradutor teria o papel de discutir o conteúdo do texto com o tradutor judeu, devendo ser versados no assunto da obra traduzida. Em seguida, o trabalho dos tradutores seria controlado e corrigido por um “emendandor”, que às vezes discutiria os problemas com os tradutores. A revisão era primeiramente de ordem técnico-as- tronômica e só em segundo lugar linguístico-estilística.

Dos três textos expostos, o Libro conplido é o que recebeu mais estu- dos e, provavelmente, o que teve maior repercussão na Idade Média. Estan- do em caracteres latinos, teria, evidentemente, um público muito mais vasto do que os demais guias aljamiados.

4.3. Ms. Laud Or. 310

O Manuscrito Laud Oriental 310, da Bodleian Library, em Oxford, é um guia astrológico, aljamiado, composto de 248 fólios. A língua é incontestavelmente o português do início do século XV. Para Hilty (1954), é um códice de interesse para elucidações referentes ao Libro conplido porque seria uma versão em português deste último. Teria sido escrito em 1410-1411, abarcando as partes 4 a 8. Assim, através dele, poderia se conhecer as três últimas partes não conservadas no original. A tradução é feita palavra por palavra e aproveita, em geral, as mesmas raízes, substituindo apenas palavras castelhanas que não existem em português.

Duchowny (2007) apresenta no Apêndice a transcrição paleográfi- ca de oito fólios (1 r e v, 2r, 182v, 240r e v, 241 r e v), trazendo informações esclarecedoras. Em 1 r (p. 296), a obra se inicia da seguinte forma, fornecendo o nome de seu “compositor” e o seu conteúdo geral:

en nome de deus amen ·· aqui começa acuarta partida do libro conprido en o juizos das estrelas oque conpos ali n g rajal outro e aqui conpesa as nacenças e conteen se en esta parte das nacenças acriança e e elees e alcodcode e os juizos das cinc casas primeyra que son des nprimeyra ata aquinta […]

Em seguida, ao final do fólio 182v (p. 299), tem-se um colofão:

aqui se acaba asetima parteda que e das eleçoes e adeus graças ∙∙tam venišlam ševah̩ lebor’e ‘olam ‘al yad yośefbar gedalia franco šemerehu ŝuro yom h̩amiši arv‘aa yamim lehodeš marheswan šenat hamešet ’alafim ume’a vešiv‘im uštaim šanim layeŝira brekh deyahev hel’a le‘avde bar ’amite barukh hašem le‘olam ’amen ’amen, barukh noten laya‘efkoah̩ uleen ’onim ‘oŝma yarbe zeman ’amen ’amen ’amen śela śela śela.

O trecho em hebraico foi traduzido em nota de rodapé (nota 1081, p. 299) da seguinte forma:

Terminado e completado graças ao criador do mundo pela mão de Yosef bar Gedalia Franco, que Deus o guarde. Quin- ta-feira, dia 4 do mês de marheswan, ano cinco mil cento e setenta e dois da criação. Bendito Deus para sempre amém, amém. Bendito o que dá força ao cansado e ao que não tem energia, vigor. Que seus dias aumentem, amém, amém.

Apresentam-se, aqui, pelo menos três informações relevantes: (i) trata-se da sétima parte do códice em questão; (ii) o ano da finalização da escrita é 1412. “Marhesvan” que dizer, literalmente, “oitavo mês” e equivale ao segundo mês do calendário civil e oitavo mês do ano eclesiástico do calendá- rio judaico; (iii) Yośef bar Gedalia Franco teria “terminado e completado” o manuscrito.

Finalmente, no fólio 241 v (p. 303), tem-se outro colofão:

aqui se cunpre o libro cunprido dos en os juizos das estrelas o que conpos abulrocen ali filho de abn rageal e deus seja loubado e agradecido amen ∙∙ tam venišlam ševah̩ lebor’e ‘olam ‘al yad yośef bar gedalia franco šemerehu ŝuro yom šiši šene yamim miroš h̩o deš ’elul šenat šiv‘im ve’eh̩at leprat, brek deyahev h̩el’a le‘avde bar ’amite ’amen ’amen.

A autora traduz o trecho em hebraico (nota de rodapé 1127, p. 303) como: “Terminado e completado graças ao Criador do mundo pela mão de Yosef bar Gedalia Franco, que Deus o guarde. Sexta-feira, dia dois do mês de elul (agosto) ano cinco mil cento e setenta e um (1411); Bendito o que dá força a seu servo, o filho da verdade, amém, amém.” Assim, de acordo com este segundo colofão, o ms. teria sido finalizado em agosto de 1411.

Hilty (1982) afirma que o Ms. 310 seria uma versão portuguesa que derivaria da versão castelhana por ele editada. Esta tradução teria sido feita em 1411 e o tradutor “tinha diante de si uma versão espanhola do Livro cunplido escrita em caracteres latinos, que traduziu para o português direc- tamente e por escrito” (Hilty 249) 10.

Gedalyah era um nome conhecido e respeitado entre os judeus ibéricos. Maimônides tinha um sobrinho chamado Gedaliah ben R. Joseph ben Don David ben Joseph Jachia, famoso jurista, historiador, filósofo e predicador entre as comunidades judaicas ibéricas. Há também R. Gedaliah ben Jacia, originado de Lisboa, famoso jurista e médico, que viveu em Constantinopla no século XV (Levi, 1995).

G. Hilty (2005) já transcreveu a sétima parte do Ms. 310 (fólios 134r a 182v), mas há necessidade de uma edição completa o mais breve possível: esta abriria novas janelas que permitiriam o melhor entendimento da filologia portuguesa. Sua edição também complementaria o que já se sabe sobre o Libro conplido.

5. Conclusão

Os trabalhos originais sobre astrologia escritos por judeus, mesmo que poucos, foram de grande importância para a Europa escolástica e para o início da Renascença. Estas obras forneceram uma ligação entre as tra- duções árabes, comentários e compilações de muitos textos importantes, principalmente através de traduções e comentários em línguas vernáculas ou em hebraico, em caracteres latinos ou hebraicos. O resultado da troca de ideias, em geral, incluindo as astrológicas, entre judeus, cristãos e ára- bes favoreceu o desenvolvimento da ciência ocidental e o estímulo ao desenvolvimento das línguas vernáculas europeias como veículos de criação e divulgação científica, em detrimento do latim.

O conhecimento da astrologia medieval judaica ainda é limitado a uma parte muito pequena de vários escritos sobre o assunto. Muito mate- rial continua ainda inédito e mesmo o que já foi descoberto — incluindo o aqui apresentado — precisa ser melhor estudado.

Biblioteca Escolar e Escola: Uma relação evidente?

 

Este artigo tem por objetivo contribuir para uma reflexão sobre o papel da biblioteca no contexto escolar, verificando as condições de funcionamento, detectando as prioridades deste espaço, conhecendo a relação entre biblioteca escolar e escola e as expectativas dos alunos em torno da biblioteca. Para isso, foi realizada uma pesquisa em 06 escolas da rede pública estadual da Cidade de Natal-RN, que têm o 4º ano. Foram utilizados como instrumentos de coleta de dados: entrevistas com alunos, professores e auxiliares de biblioteca, bem como observação. Os dados obtidos foram analisados a partir de um referencial teórico que contemplou uma concepção de biblioteca e de leitura, baseada em estudos da psicolinguística, articulados a uma análise do papel da biblioteca no contexto escolar. Conforme os dados apresentados a biblioteca encontra-se desarticulada com os conteúdos escolares e sem atender os interesses de leitura, permanecendo isolada e sem envolvimento com a prática educative, tornando-se assim um local de acúmulo de informações, não um local de conhecimento, de veiculação do saber, um centro de referência de informação no contexto escolar.

AGÁLIA no 101 / 1o Semestre (2010): 9-34 / ISSN 1130-3557 / URL: http://www.agalia.net
Este trabalho inclui-se no projeto de investigação do mesmo nome financiado pela Universidade do Estado de Rio Grande do Norte (UERN) no período 2000-2002.

A nossa experiência de trabalho em escolas públicas como professora e orientadora educacional fez despertar um interesse direcionado às suas bibliotecas, visto o descaso e a pouca importância dada às mesmas tanto pelos responsáveis como pelos que as utilizam.

Partindo de uma visão de biblioteca enquanto centro de referência de informação no contexto escolar, essa pesquisa tem como objetivo geral contribuir por meio de aportes teórico-metodológicos para uma reflexão sobre o papel da biblioteca no contexto escolar. Nessa perspectiva procuramos: verificar as condições de funcionamento da biblioteca; detectar as prioridades da biblioteca escolar; conhecer as relações que se estabelecem entre biblioteca escolar e escola; identificar as expectativas dos professores e dos alunos em relação à biblioteca escolar.

Dessa forma, recorremos a uma pesquisa de campo, em que definimos para a coleta de dados a observação diretiva intensiva, e a entrevista, tendo em vista, como afirmam Lakatos e Marconi (1992), que a observação não consiste apenas em ver e ouvir, mas em examinar fatos ou fenômenos estudados, e a entrevista através de uma conversa frente a frente proporciona ao entrevistador a informação necessária.

Escolhemos para investigação o universo de 30 escolas da rede pública estadual de ensino da Cidade de Natal-RN, todas elas oferecendo o 4º ano do ensino fundamental e possuindo bibliotecas. Desse universo, escolhemos 20% para representá-las, totalizando 06 escolas escolhidas aleatoriamente, levando em conta a sua localização em bairros diferentes.

Os discursos dos sujeitos envolvidos: professores, alunos e auxiliares de biblioteca, foram analisados a partir de um referencial teórico que contemplou uma concepção de escola, biblioteca e leitura. Inicialmente, refletimos sobre a escola como uma instituição formal onde a educação acontece de forma sistemática, planejada, intencional. O saber da escola é um saber organizado, dirigido à preparação do indivíduo para o domínio de conhecimentos universais, ao desenvolvimento cognitivo, ao uso e conhecimento de instrumentos profissionais, bem como à formação do cidadão e do homem político.

Esse acesso ao saber organizado, à cultura universal inicia-se com a aquisição da leitura e da escrita, entendida por muitos como única função da escola. No nosso entender, ler não é apenas atribuir significados às palavras escritas em textos verbais, ou seja, apenas a decodificação de signos, vai mais além, pois precisamos também fazer reflexões em torno do que ler. Sendo assim, a ação de ler caracteriza toda a relação racional entre o indivíduo e o mundo que o cerca, o que não é uma ação mecânica, nem muito menos estática, mas uma atividade em que se admitem as várias interpretações, o desvendar dos significados omitidos no texto, a busca da consciência do ser no mundo, e a interação entre texto e leitor.

Considerada assim, a leitura leva o aluno a posicionar-se criticamente, desvelando a sua realidade e o seu contexto sócio-cultural, e a escola deve ser um instrumento de transformação, pois nela é veiculado o saber, que se dominado leva a questionamentos, discussão e compreensão do mundo que nos rodeia.

E é sabendo ler criticamente, e, freqüentemente, que se pode pensar sobre a realidade, sobre as nossas condições de vida em prol de uma melhoria dessa condição e de uma maior possibilidade de participação social, como afirma Cassany (2002: 1): “en definitiva, la persona crítica es la que mantiene una actitud beligerante en la consecución de sus propósitos personales, através de la lectura y la escritura, pero también la que participa”.

A competência leitora literária aqui adotada compreende, na interação do leitor com o texto, o preenchimento dos espaços em branco (Eco, 2003), o cruzamento da informação do texto com os saberes do mundo empírico e histórico-factual (Azevedo, 2006), ou seja, o desvendar dos elementos omissos no texto pelo leitor que incluirá na leitura a sua competência enciclopédica, bem como os conhecimentos adquiridos na relação leitor-mundo que possibilitam fazer inferências no texto lido, inserindo assim os aspectos cognitivos, emocionais e afetivos do leitor, tornando a leitura tambémumato de prazer. Segundo Pontes e Barros (2007: 71):

É essa competência que permite ao leitor estabelecer um diálogo com o texto, inferindo, prevendo, comparando com leituras e experiências anteriores, estabelecendo relações com as mesmas, interpretar, e assim construir novos conhecimentos. É desta interacção que advém a conquista do pensamento crítico e divergente, a abertura de novosmundos e horizontes, umnovo olhar sobre o outro, e, obviamente, umcontacto próximo comuma escrita de qualidade, coma riqueza e as potencialidades da língua.

A compreensão da importância e utilidade da leitura por seus alunos será cultivada na escola quando se valorizar também leituras que o aluno traz do seu cotidiano. Sobre isso nos fala Freire (1983: 11) ao afirmar que o ato de ler não se esgota na decodificação da escrita,mas “se antecipa e se alonga na inteligência domundo”.

Isso significa dizer que atribuímos significados aos diversos símbolos encontrados no nosso dia a dia, seja uma fala, uma televisão e umjornal, ou até mesmo um objeto, pois nos proporcionam leituras próprias e diversas, e isso não pode deixar de ser considerado pela escola, para que o aluno perceba a vinculação existente entre a realidade e o que emana da leitura do texto literário.

Como ressalta Coimbra (1990) isso significaria transformar a leitura de um ato mecânico, perceptivo, em um momento significativo, em que se dê o prazer de ler, porque a criança ao ler um texto que tenha relação com as suas experiências, seus interesses e suas necessidades, fará surgir ideias e uma vontade de conversar com o autor, o que poderá ainda provocar um desejo de ler sempre mais, tornando o texto uma fonte inesgotável de saber sobre o seu mundo. Essa utilização do texto em sua vida, na sua prática social é o que denominamos hoje de literacia.

Constatamos, de acordo com pesquisas realizadas por Pontes (1993, 2003, 2005)1 e Azevedo (2006)2, a existência de pouca discussão e ampliação do trabalho realizado com os textos em sala de aula, no ensino de língua portuguesa, e isso faz com que o aluno não dialogue, visto que as atividades com leitura realizadas pelos professores apresentam sempre formas de interrogação muito objetivas e lineares, apenas cumprindo e respondendo ao que pedem os manuais escolares, quando na verdade deveriam ajudar a desenvolver em indivíduos a capacidade crítica de compreender o mundo de que faz parte, para nele interferir e atuar.

A ideia de biblioteca escolar defendida neste artigo é a de um espaço de leitura dinamizador, capaz de provocar diversas situações que motivem o aluno/leitor a ler e envolver-se com essa leitura, sendo capaz ainda de diversificá-la, relacionando-a com outras leituras. O espaço de leitura da biblioteca escolar é um espaço amplo, de divulgação de leitura, e repleto de atividades envolventes. Para isso, precisa de pessoal capacitado que conheça e organize seu acervo, fazendo-o circular, transformando o leitor, tornando-o inquieto, capaz de fazer suas escolhas, construir seu próprio texto e socializando-o com os seus pares, como afirma Sáiz (2007: 179): “(…) Promover a leitura é também cuidar dos leitores que já existem, porque promover uma actividade é acima de tudo tornar essa actividade relevante em termos sociais e culturais”.

Relatamos agora o que vimos, ouvimos e analisamos a partir dos dados coletados pelos sujeitos da pesquisa nas escolas públicas pesquisadas. Apresentaremos na continuação a situação das bibliotecas escolares e os discursos dos professores e alunos que fazemparte desse contexto escolar.

1. Situação das Bibliotecas Escolares

Quanto à sua organização interna, as bibliotecas escolares não possuem fichários para registro do acervo existente, e sim anotações em um caderno, realizadas de forma aleatória sem separar por área de conhecimento, nemdiferenciando o que é livro, artigo, revista, atlas, ou outro tipo de material. Os livros são distribuídos nas estantes por assunto e disciplinas específicas, como por exemplo: educação, literatura, história, geografia, português, etc. Em 80% das bibliotecas encontramos mesas e cadeiras para a realização de leitura pelos usuários, 20% delas encaminhamosmesmos para a sala vizinha.

Apenas 20% dessas bibliotecas têm o acervo cadastrado e quantificado. Verificamos que esse acervo é diversificado, incluindo livros de Educação, Filosofia, Sociologia, Psicologia, coleção “Os pensadores”, obras literárias de Machado de Assis, José de Alencar, Érico Veríssimo, Ana Maria Machado, Ziraldo, Sylvia Orthof, entre outros. Em termos quantitativos encontramos dominantemente livros didáticos das diversas disciplinas: História, Geografia, Matemática, Português e Ciências.

De uma forma geral, as bibliotecas precisam de uma melhor organização no seu acervo, assim como de uma estrutura física que proporcione o atendimento de um número maior de usuários em umas instalações físicas que apresentam, de regra, boa iluminação, ventilação suficiente, local apropriado, situado na entrada da escola, visível e de fácil acesso.

Por seu lado, o horário de funcionamento desse espaço é de acordo com a sala de aula, 60% delas fechando inclusive na hora do intervalo. A forma de atendimento por nós observada se dá através da entrega de um livro de acordo com o assunto pedido pelo aluno, não sendo feita nenhuma orientação posterior.

Durante o período de observação (1 dia para cada escola) não foi feito nenhum empréstimo, nenhuma atividade de incentivo à leitura ou integrada ao contexto escolar. Em apenas 20% delas houve uma freqüência razoável de alunos, cerca de 9 alunos, a maioria das bibliotecas atendeu apenas 1 ou 2 usuários que fizeram consulta ao livro lá mesmo.

Os itens a seguir tratam dos dados coletados nas entrevistas realizadas com alunos, professores e auxiliares de biblioteca.

2. O que dizem os alunos

A entrevista realizada com alunos obedeceu a um roteiro composto de 09 perguntas, incluindo faixa etária, freqüência à biblioteca, concepção de biblioteca escolar, e conhecimento de atividades relacionadas a esse espaço e à sala de aula.

O primeiro item da entrevista colheu informações sobre a idade desses informantes. Os resultados foram: 40% se encontram na faixa etária de 10 anos, considerada a faixa regular para cursar a 4ª série no Brasil, e 60% se encontram fora dessa faixa, variando de 11 a 15 anos.

Os itens a seguir tratam dos aspectos relacionados à biblioteca escolar e a sua relação com o contexto em que se encontra: a escola.

Dos alunos entrevistados, 40% disseram freqüentar a biblioteca, 27% freqüentam às vezes e 33% não freqüentam. As razões de freqüentarem a biblioteca são: “para ler livros”, “pesquisar”, “aprender” e “porque gosto”. Os que afirmaram ir às vezes vão só para “pegar o dicionário” ou “pegar um livro quando preciso”. Os que não vão à biblioteca (33%) se justificam dizendo: “ninguém botou pra eu ir lá” e “não gosto”.

Sabendo que as bibliotecas pesquisadas ainda se encontram aquém de um ideal que atenda às necessidades de leitura dos alunos, essa freqüência dos mesmos nos surpreende e faz com que pensemos que se é possível a presença espontânea desses alunos, sem esta presença estar ligada a um trabalho realizado pelo auxiliar de biblioteca ou pelo professor, então se torna possível a realização do projeto de formação de leitores.

Esses leitores que pretendemos formar devem sentir prazer na leitura, por compreenderem o seu significado, compreensão considerada aqui como: “o fator que relaciona os aspectos relevantes do mundo à nossa volta -linguagem escrita, no caso da leitura- às intenções, conhecimentos e expectativas que já possuímos em nossas mentes” (Smith, 1991: 21); e que além de buscarem conhecimentos, participem e saibam criar um novo saber.

Todos os que vão à biblioteca disseram que gostam de ir porque gostam de ler os livros que têm lá, e citaram como lidos O Menino Maluquinho, de Ziraldo, Maria Fumaça, de Sylvia Orthof, e livros didáticos de Geografia e História. A opção por livros didáticos deve-se provavelmente por ser o acervo constituído, na sua maioria, desses livros, conforme verificamos na observação realizada. Sendo assim, a escolha está de acordo com as opções encontradas.

Encontramos também essa constatação na pesquisa realizada por Madureira (1987: 120) nas bibliotecas das escolas da rede estadual de en sino de 1º grau no Estado do Paraná: “O acervo das bibliotecas visitadas é na grande maioria constituído especificamente de livros didáticos, abrangendo as áreas de ensino de 1ª a 8ª séries. As obras de referência se restringem a dicionários da Língua Portuguesa, Enciclopédia e coleções gerais para atendimento às pesquisas.”

Quando citam livros didáticos para ler, os alunos estão se referindo à prática da pesquisa, percebida por eles como a transcrição do texto escrito, cópias de pedaços nele contidos3; isto, para nós, representa um ato mecânico, ao entendermos a pesquisa como uma busca, uma investigação cuidadosa de um tema. Sobre isso Romanelli (1990: 29) faz o seguinte comentário: “O modo como a pesquisa é trabalhada, na sala de aula e nas bibliotecas, não atinge nem o assunto pesquisado dentro dos conteúdos de história, ciências ou geografia e nunca chegará a interferir nos processos mais profundos e necessários que levariam a um comportamento aberto e rico em idéias, frente aos problemas da vida.”

3. Concepção de biblioteca escolar

A compreensão da maioria dos alunos quanto ao que é uma biblioteca é de que é “um local, espaço onde tem muitos livros” (60%). Também encontramos outras respostas: “[o] mesmo que livros educativos”; “onde as pessoas se desenvolvem, lendo livros”; “lugar bom”; “[o] mesmo que livros educativos, brincadeiras”; “um canto para descansar a memória, um local que a gente fica mais à vontade”.

Essa visão de biblioteca apenas como um espaço onde tem muitos livros, remete-nos a uma concepção secular de quando surgiu a biblioteca como local de preservação de livros, tesouros de raro valor, devido ao alto custeio das obras. Desde o séc. XIV, com a difusão do papel, que barateou as cópias manuscritas, e com a invenção da impressão (séc. XV) o registro da escrita chegou a um número maior de pessoas. “As bibliotecas deixaram de ser tesouros para se tornarem serviços e os livros perderam o seu valor material para se tornaremmaterial de consumo” (Milanesi, 1986: 21).

Os alunos que dizem ser a biblioteca o mesmo que livros educativos podem ser incluídos na categoria dos que a vêem como local de pesquisa, ou melhor, de buscar os livros para a pesquisa. Por seu lado, ao definir a biblioteca como local onde as pessoas se desenvolvem, os informantes estão relacionando esse espaço de alguma forma com a prática educativa; e referindo-se à biblioteca como “lugar bom”, esses alunos transmitem a sua ideia de biblioteca enquanto local prazeroso. Mas as condições das bibliotecas pesquisadas não favorecem essa compreensão, o que nos faz concluir que existe uma percepção anterior, ou uma perspectiva dos alunos em relação à biblioteca que coincide com a nossa visão de um lugar que ao proporcionar o contato agradável com os livros, proporcione também o gosto pela descoberta de informações.

Sabemos que as tarefas escolares se voltam para a busca de informações contidas em um texto, diferente da leitura que envolve o leitor, interage- o com o texto, fazendo sentido e proporcionando prazer. Quando vista assim, a leitura passa a ser “uma prática social que remete a outros textos, outras leituras e uma atividade mental complexa em que o leitor utiliza diversas estratégias baseadas no seu conhecimento lingüístico, sociocultural, enciclopédico.” (Kleiman, 1993: 10-12).

Quanto à afirmação de que a biblioteca é “um canto para descansar a memória, um local onde a gente fica mais à vontade” relacionamo-la com a percepção de leitura, enquanto atividade que proporciona prazer, e por isso não cansa, mas descansa, deixa-nos à vontade.

4. Situação da biblioteca escolar

Quando indagamos se a biblioteca tem tudo o que precisa, os alunos responderam que sim (67%), não (13%) e não sabem (20%). Pela situação em que se encontram as bibliotecas, verificamos que as exigências desses alunos são muito poucas, o que nos remete novamente a simples prática de transcrição de livros para trabalhos solicitados pelo professor.

Perguntamos se os alunos conhecem alguma atividade realizada pela biblioteca, 93% responderam que “não”, enquanto 7% afirmaram conhecer. O que nos faz mais uma vez constatar que a biblioteca serve apenas como depósito de livros, local de livros, como já nos disseramesses alunos.

Direcionamos algumas perguntas para as atividades realizadas pela biblioteca escolar e sua integração com o contexto escolar, ou seja, com o processo ensino-aprendizagem propriamente dito. Assim, indagamos sobre a ida à biblioteca com o professor ao que os alunos responderam que ”não” (86%) e apenas 14% falaram que “sim”, com “o professor de matemática para tirar 3 adições e 3 subtrações” e “o professor de português para pesquisar e fazer leitura”.

Essas respostas sugerem que a ida à biblioteca se faz sem planejamento, sem ligação com a proposta do professor, bem como sem entendimento do que seja uma biblioteca, o que comprovamos quando nos referimos à existência de um material da biblioteca utilizado pelo professor, e 53% disseram que o professor utiliza livros, levando-os para a classe para atividades enquanto 47% disseramque os professores não fazematividades.

Ao pedirmos para citarem livros que já tenham lido na biblioteca, 53% afirmaram não ler, e os 47% que leram, citaram livros de literatura infantil como O Menino Maluquinho, O macaco Queco e Quico, A onça doente e alguns livros didáticos; quase todas essas leituras foram indicadas pela professora, destes apenas 6% disseram procurar o livro porque “gostou dele”.

5. O professorado e a concepção de biblioteca escolar

Perguntamos, inicialmente, se a biblioteca atende às necessidades da escola, e 66% desses informantes responderam negativamente; do 34% que responderam afirmativamente, 17% disseram que o espaço atende e os outros 17% estão satisfeitos com o acervo. No entanto, estes professores (17%) mencionaram a falta de uma pessoa responsável na biblioteca, para orientar a pesquisa e para integrá-la ao ensino, explorando o acervo que lá se encontra.

O acervo da biblioteca é conhecido por 83% do professorado, o que faz percebermos pelo menos um contato desses com os livros que lá se encontram, mas faltando uma direção, um envolvimento em relação ao que pode ser realizado nesse espaço.

A concepção do pessoal docente em relação à função da biblioteca escolar é de que: “serve para ajudar na pesquisa dos alunos”. Vemos aqui que mais uma vez a pesquisa é encarada como prática principal da biblioteca; entenderíamos esse ponto de vista se essa prática se desse da forma como menciona Demo (1997: 34): “a pesquisa é fundamental para descobrir e criar. É o processo de pesquisa que, na descoberta, questionando o saber vigente, acerta relações novas no dado e estabelece conhecimento novo”. Mas verificámos que essa compreensão sobre a pesquisa ainda não existe.

Perante a pergunta, “Você precisa da biblioteca? Ou acha que ela é desnecessária?”, 66% responderam que precisam da biblioteca e todos esses a acham necessária, 34% disseram não precisar e, desses, 17% acham que ela é necessária, enquanto os outros 17% acham que a biblioteca, do jeito em que está, é desnecessária, pois não tem material. Os que responderam precisar da biblioteca relacionaram a necessidade de uma biblioteca ao que esperam que ela seja, conforme veremos: “acho que ela é necessária para atender às necessidades de leitura da escola e do professor”; “a biblioteca serve como instrumento de trabalho, serve para mudar a rotina, como material didático e como forma de expandir a criatividade”; “como podemos passar educação ao aluno sem dar valor ao livro? E o livro se encontra na biblioteca”.

Nessas justificativas dos entrevistados encontramos uma valorização ao livro, à leitura, o que nos leva a perceber que o professor valoriza esse espaço na escola, apesar de não verificarmos ações que mostrem essa valorização, visto que suas aulas não extrapolam o espaço de sua sala. Neste sentido, a valorização do livro foi uma constante nas afirmações dos professores, no entanto, não expandem essa compreensão nem a relacionam com as atividades realizadas por eles na disciplina que ministram, e que objetiva o desenvolvimento da compreensão oral e escrita, a partir de estudos de textos literários existentes nos livros didáticos adotados.

No entanto, julgamos que a literatura deve ocupar um espaço privilegiado, em que a partir dela seja possível refletir sobre o mundo, bem como distanciar-se dele, numa perspectiva real e/ou fantasiosa; em que o leitor seja agente, interfira no texto com suas particularidades, escolhendo livremente suas próprias trilhas a seguir. Só assim, através de um trabalho sistemático e intencional de interação com o texto literário é que podemos formar leitores que sejam capazes de exercitarem comportamentos interpretativos de nível crítico e não apenas gastronômico ou ingênuo, conforme Eco (1997).

No discurso do professor que diz achar desnecessária a biblioteca escolar do jeito que ela está, notamos que existe uma compreensão inicial desse espaço como dinamizador, só que esse professor não se percebe como coresponsável por essa dinamização, responsabilizando o espaço por si só, como isolado do contexto em que este trabalha: o contexto escolar. Podemos perceber, na maioria desses discursos, uma visão estática de biblioteca, como local onde se encontra material, e em um deles (“passar educação”) a concepção de escola vinculada àmera transmissora do saber obtido nos livros.

Compreendemos que a escola, além de veiculadora do conhecimento, deve ser propiciadora do novo, o que só vai ser possível se os professores deixarem de ser meros instrutores e passarem a ser mediadores desse processo, favorecendo o envolvimento dos aprendizes, entendendoos como detentores de um repertório, que pode não ser o da escola, mas jamais pode ser ignorado, e sim incorporado ao contexto escolar, para que assim possa fazer sentido ao aluno.

Quando perguntamos aos professores se existia alguma relação do trabalho realizado por eles com o trabalho realizado pelos que estão na biblioteca, foram unânimes em responder que “não existe nenhuma relação”. Os professores quando não relacionam o seu trabalho com o da biblioteca mostram o isolamento em que vivem, como se o conhecimento fosse restrito apenas à sala de aula.

Essa atitude diverge totalmente da nossa compreensão do processo educativo como abrangente e veiculado em todo o contexto escolar, pois não entendemos que o professor e os materiais didáticos sejam os únicos provedores de conhecimento; faz-se necessário expandir o conhecimento além das “quatro paredes” da sala de aula, além dos conteúdos didáticos, das normas estabelecidas em sala de aula, propiciando ao aluno oportunidades de busca de saberes, de criação, de vivência, participação, envolvimento com diversos elementos que permitam reflexão, transformação, compreensão de si mesmo e do mundo que o rodeia.

Se no próprio contexto escolar as práticas educativas se isolam, entendemos que a escola se encontra isolada também do contexto social de que faz parte, não ultrapassando os seus muros, tornando mais difícil ainda compreender, como afirma Vygotsky (1994: 109), que “toda a aprendizagem da criança na escola tem uma pré-história”, dificultando assim o envolvimento da criança com as atividades escolares, e consequentemente com uma aprendizagem significativa que tenha sentido para o aluno.

Os professores se apresentaram unânimes também quanto a resposta à pergunta: “Você vê algum trabalho de dinamização da biblioteca?”, respondendo “não”, o que reafirma a separação existente entre sala de aula e contexto escolar, bem como nos possibilita perceber que os responsáveis pela biblioteca evidenciam a ideia secular de biblioteca como local à espera dos que por ela procuram. Sem dinamizar esse espaço, a biblioteca vai continuar apenas existindo, sem ser necessária, perdendo a sua função de lugar onde vive e se constrói o conhecimento.

Mais uma vez encontramos 100% de respostas negativas quanto à outra pergunta: “A biblioteca é parte integrante das ações da escola?”, comprovando o isolamento que vive a biblioteca e, por outro lado, o professor em sala de aula, o que nos faz supor que se encontra restrito aos seus apontamentos e ao livro didático adotado por ele, achando que não necessita transpor as paredes da sua sala de aula.

Perante a pergunta, “Você freqüenta a biblioteca? Por quê razão?”, metade dos professores disseram freqüentar a biblioteca para “pegar livro emprestado”; “fazer recortes de trabalhos”; “fazer trabalho com os alunos”. Os 50% que disseram não freqüentar a biblioteca, justificaram da seguinte forma: “não tem livros”; “tenho em casa material mais atualizado”; “tenho muitos livros em casa”.

Verificamos que essa ida à biblioteca para fazer trabalho com os alunos deveria ser a atividade de pesquisa, que para nós não está sendo compreendida como tal, mas como “fazer trabalho” simplesmente, muitas vezes sem orientação prévia. Dessa forma, os alunos procuram um assunto sem saberem direito do que se trata, e ao terminarem a atividade continuam sem saber ainda o que significa, visto que geralmente são meros copiadores do que se encontra escrito no material de pesquisa fornecido.

Questionamos agora sobre essa ida à biblioteca para recortes de trabalhos, atividade feita em livros didáticos considerados velhos, sem uso e em revistas, atividade essa que não podemos considerar educativa, visto não proporcionar nenhuma nova aprendizagem, nem compreensões que ampliem o repertório do aluno ou do professor.

Todos os professores entrevistados afirmaram gostar de ler e indicaram como preferências de leitura as revistas Cláudia e Nova Escola, assim como romances como os de Machado de Assis, romances policiais e a gramática da língua portuguesa. Consideramos essas preferências de ordem pragmática, utilitária e bem reduzida, visto os inúmeros materiais de leitura existente em nosso país. Consideramos também que o fato de todo o professorado inquirido afirmar que gosta de ler sugere que são leitores habituais, o que os coloca em situação de vantagem e mesmo constitui conditio sine qua non para ser um bom professor em opinião de Silva (1991: 90), para quem, “transformando-se num bom leitor pelo testemunho, pelo exemplo e pela competência, poderá orientar condignamente a leitura junto aos seus futuros alunos”.

Outra questão feita aos professores foi, “Como você gostaria que fosse a biblioteca?”, resultando as seguintes respostas: “que fosse um espaço maior, com bibliotecária capacitada para trabalhar com o professor e o aluno”; “que tivesse material didático, recursos audiovisuais para ajudar as aulas e que houvesse maior colaboração da escola e de quem trabalha na biblioteca”; “que fosse rica em livros literários, com vídeo para aproveitar a adaptação do livro ao filme, com boas fontes de pesquisas, pessoas especializadas para desenvolver atividades em parceria com o professor, com material didático como papel para desenhar, desenvolver uma redação”; “que tivesse livros que os alunos gostassem de ler e que não têm nada a ver com a escola, leitura de lazer, que tivesse livros de outras áreas, que a pessoa que tomasse conta dela fosse uma pessoa especialista que gostasse de livro, que saiba alguma coisa para orientar os estudantes a respeito da pesquisa”; “que a pessoa da biblioteca trabalhasse em conjunto com o professor e o aluno, que a sala fosse maior”; “que houvesse integração, que o livro lido pelo aluno tenha relação com a sala de aula. Ler por ler não adianta, não faz sentido”.

Com essas respostas, vemos que o professorado deseja que haja integração da biblioteca com o conteúdo de sala de aula, integração essa que seria necessária para a efetivação de um real trabalho que possa justificar a necessidade desse espaço na escola. Entendemos com essas respostas que existe uma concepção de biblioteca escolar compatível com a visão de que esse espaço deve ultrapassar os seus limites e que sendo um centro de documentação, seja também um local ativo, dinâmico, integrado ao processo educativo, propiciando aos que a freqüentam o gosto de ler.

Por último, solicitamos aos docentes sugestões de trabalho a ser realizado na biblioteca, ao qual os professores relacionaram as seguintes atividades: “leitura, desenhos, pesquisa, criação de textos, contos, fazer a criança formar histórias”; “orientação de assuntos, do acervo existente, realização de empréstimo”; “incentivo à leitura, desenvolvimento da linguagem e da escrita (distribuição de livros para os alunos lerem na biblioteca), divulgar livros comparando com os programas de televisão e vídeo”; “1 hora por semana com cada turma mostrando a biblioteca, onde se encontram os livros, lesse para eles, que incentivasse os alunos para irem lá”; “atividade sobre as datas comemorativas, divulgação do acervo”; “expor trabalhos feitos, desenhos, livros, criação de textos, de livros, exploração das idéias dos alunos sobre os livros que leram”.

Como era de esperar em um coletivo profissional responsável e conhecedor do seu papel, o professorado compreende como realmente deve funcionar uma biblioteca escolar, pois além de sugerim atividades relacionadas com a leitura, contos de histórias, sugere também atividades de integração entre esse espaço e a sala de aula. No entanto, esses profissionais continuam relutantes em mudar as suas ações, quando na verdade têm compreensão do ideal e sabem como mudar e melhorar a sua prática.

6. Os auxiliares de biblioteca

Encontramos nos auxiliares pesquisados uma formação maior quanto ao nível de 2º grau (60%), o que também foi verificado por Carvalho (1984) em pesquisa realizada nas escolas de 1º e 2º grau de Fortaleza-CE/ Brasil.

Ao perguntarmos por que trabalham na biblioteca, tivemos as seguintes respostas: “para substituir a que está de licença”; “porque só tinha vaga na biblioteca”; “tive de me afastar da sala de aula”; “não tinha sala de aula”; “pela disponibilidade de trabalhar aqui”. Observamos, com essas respostas, que a maioria dos auxiliares está na biblioteca porque a situação exige e não pela preparação na área ou vontade própria de realizar um trabalho, o que foi constatado também por Pontes (1993) em sua pesquisa sobre as bibliotecas das escolas da rede pública da Cidade de Natal-RN/ Brasil. Dessa forma, fica difícil esperar um bom desempenho desse profissional, visto que não tem intenção de trabalhar nesse espaço, e portanto, não se sente comprometido em sua função.

Perguntados por qual é a função da biblioteca escolar, os auxiliares de biblioteca responderam-nos: “complementar a sala de aula, local de acesso a livros de pesquisa”; “aula de reforço de leitura”; “não sei”; “incentivo à leitura e para desenvolver o aluno em termos de aprendizagem”. As respostas dadas permitem-nos fazer as seguintes considerações: é condição básica para qualquer profissional o conhecimento do espaço onde atua; como 40% dos auxiliares não têm essa condição ao afirmarem que não sabem, 40% indicaram a biblioteca escolar como aula de reforço de leitura e complementar à sala de aula, e apenas 20% como espaço de incentivo à leitura e para desenvolvimento da aprendizagem, consideramos que, consequentemente, a maioria deste coletivo não está a atuar com conhecimento das funções da biblioteca na comunidade escolar, e dificilmente poderá assim realizar um trabalho apropriado.

Para nós esse percentual é bastante significativo, uma vez que esse espaço fica sem significado, sem razão de existir, deixando de atender uma grande quantidade de alunos que perdem com isso a possibilidade de ampliar o seu repertório de leitura e percorrer outros caminhos educativos e prazerosos no âmbito escolar. Apesar das outras respostas (“local de livros de pesquisa”, “aula de reforço de leitura” e “incentivo à leitura“) serem restritas, sim estão referenciadas no âmbito da leitura e da pesquisa, precisando porém ampliar o seu conhecimento nessa área para a realização de uma prática coerente.

Ao perguntarmos qual é a diferença entre biblioteca pública e biblioteca escolar, 60% se referiram à quantidade de acervo, que é maior na primeira, enquanto 20% disseram que o acesso é maior na biblioteca escolar, diferindo-as também em relação à clientela atendida, e outros 20% não viram diferença entre as bibliotecas citadas. Ora, esses profissionais não nos falaram dos serviços, das atividades de cada um desses espaços, falando- nos apenas do que é mais evidente, não da especificidade da biblioteca escolar, visto ser um espaço ligado diretamente ao contexto educativo e dele fazendo parte, e por isso com relação mais direta com o aluno. Ao deixarem de mencionar o caráter educativo, a especificidade da escola, os auxiliares nos surpreendem, pois 80% destes profissionais são professores.

Ao pedirmos que analisassem sua atuação na biblioteca escolar, 60% responderam que acham “boa”, 20% “regular” e 20% acreditam que sua atuação é “falha”. Os que consideram a sua atuação “boa” justificam dizendo que atendem bem quando os alunos lá estão, conversam com eles, emprestam os livros. Recordamos então que 60% desses entrevistados falaram anteriormente que a função da biblioteca escolar diz respeito ao incentivo à leitura, à aprendizagem dos alunos e à pesquisa escolar.

Relacionamos então essas respostas: se esses profissionais consideram a sua atuação boa, deveria ser porque realizam atividades relacionadas ao que afirmaram ser função da biblioteca escolar, mas na verdade o que eles fazem não está relacionado ao incentivo à leitura, nem à realização de pesquisa pelos alunos, como veremos em outra pergunta direcionada às ações dos mesmos. Coerentemente, os que disseram ser a sua atuação “falha” (20%) e “regular” (20%) representam os que não sabem qual é a função da biblioteca escolar.

Quando perguntamos sobre a rotina de trabalho desses auxiliares, 80% responderam-nos que era emprestar livros e arrumá-los, metade destes 80% realizam também uma atividade diferente, recortar livros velhos para os alunos colarem em seus trabalhos. Apenas 20% falaram que atendiam uma turma por dia, incluindo crianças da comunidade para contar histórias e informar “alguma coisa”.

Julgamos que se os auxiliares acreditam que realizam um bom trabalho emprestando livros e recortando livros para os trabalhos dos alunos, estão reduzindo o papel da biblioteca escolar a um local que possui acervo, e não a entendem como prestadora de serviço aos alunos, o que reafirma outras afirmações prestadas por estes sujeitos: “incentivo à leitura”, para a “aprendizagem dos alunos” e “ajudar nas pesquisas escolares”.

Quando perguntamos se esses profissionais participam do planejamento anual e bimestral da escola e se conhecem o conteúdo das disciplinas, foram unânimes em responder que “não participam”, evidenciando assim a falta de integração da biblioteca escolar com o processo pedagógico, com o conteúdo escolar e com a aprendizagem dos alunos.

Indagados sobre o gosto de ler, 60% responderam que sim, e 40% que gostam pouco. Achamos que este último resultado pode, eventualmente, afastar este pessoal laboral dos objetivos perseguidos no seu trabalho, no sentido de afetar negativamente ao empenhamento da socialização do hábito de leitura entre o público alvo da biblioteca escolar.

á quanto ao tipo de leitura que realizam, disseram-nos que lêem obras literárias (40%) , livros didáticos (20%) e revistas (40%) , o qual demonstra pouca diversificação na escolha. Sabemos que existe uma diversidade de acervo nestas bibliotecas, pelo qual reduzir a tipologia de leituras indica distanciamento de todo um saber existente e faz ficar à margem do conhecimento que é contínuo e renovado a todo instante. Assim, a maioria (60%) faz opção por leituras pragmáticas e imediatistas, que exigem pouca reflexão. Isto foi corroborado ao solicitarmos dos entrevistados o nome de livros lidos, altura em que relacionaram algumas obras literárias (40%) como Helena, A Escrava Isaura, A Ilha Perdida, e Montanha Encantada, livros de cunho religioso (40%) e livros didáticos (20%) , confirmando assim o que anteriormente concluímos como leitura reduzida.

Em relação à procura do acervo da biblioteca pelos alunos, os auxiliares nos disseram que 60% lêem livros didáticos e 40% livros de fição como Eu e minha luneta de Cláudia Martins, A cartinha cor-de-rosa de M. C. Silva, À procura do sol de Lannoy Dorin e A planta Mágica de Gilda Figueiredo. Entendemos que a procura por livros didáticos se dá devido o acervo se constituir em sua maioria desses livros, como também para a realização de pesquisas solicitadas pelos professores. Os 40% que escolhem as obras literárias fazem isso quase ao acaso, visto que só em 20% das escolas existe um trabalho voltado para o incentivo a esse tipo de leitura, que é o conto de histórias.

Perguntamos como se dá a aquisição do acervo da biblioteca escolar, 40% responderam-nos que esperam da Secretaria da Educação do Estado do Rio Grande do Norte, 40% procuram as editoras e livrarias e 20% adquirem por ações voluntárias. Ficar à espera dos (escassos) recursos que o Estado destina à educação e, em particular, às bibliotecas escolares não demonstra uma atitude proativa, ao contrário daquele 60% que dissera procurar outros meios para obter o acervo, ainda que, neste caso, detetamos em geral ações isoladas que, para serem efetivas, precisariam ser sistematizadas, planejadas e dotadas de continuidade.

Ao indagarmos se esses auxiliares orientam a escolha de livros pelos alunos, todos responderam que sim, pois mostram o livro na estante ou dizem o livro que deve ter o assunto procurado. Da nossa parte, compreendemos que orientar os alunos na escolha de livros requer um conhecimento desse acervo e um esclarecimento desse conhecimento através de uma troca de ideias, com a intenção de integrar o interesse ao que existe na biblioteca, procurando também expandir, incentivando a leitura também de outros assuntos não procurados.

Por último, ao perguntarmos sobre a relação desses profissionais com os alunos, todos disseram que é boa, no sentido de tratá-los bem, só que, como constatamos, não há uma integração maior entre o saber do profissional com a procura de outros saberes pelos alunos.

7. Considerações Finais

Esse artigo pretende contribuir para uma reflexão em torno do papel da biblioteca no contexto escolar da rede pública estadual brasileira, entendida aqui a biblioteca escolar como um centro de difusão de cultura em que seja viabilizada a circulação do livro e a formação de um leitor que, por sua vez, seja capaz de ler e compreender o texto lido, entendendo igualmente que a aprendizagem da língua possibilita o desenvolvimento do aluno em amplos aspectos vitais e a sua inserção e integração na sociedade emque vive.

Em nossa pesquisa, constatamos que o trabalho realizado pelas bibliotecas pesquisadas se encontra aquém desse objetivo, principalmente devido aos recursos humanos que lá se encontram e à estrutura física proporcionada ao leitor. Na verdade, verificamos que não existe nenhuma ação voltada para o incentivo à leitura, motivo pelo qual a biblioteca existe. Algumas bibliotecas pesquisadas nem sequer realizam empréstimo de livros aos alunos e nenhuma delas tem um programa direcionado à promoção das atividades de leitura.

Apesar de que em alguns espaços de leitura encontramos um acervo diversificado, e um local apropriado à leitura devido a sua instalação física adequada, não encontramos leitores interessados, o que nos faz perceber quanto é importante um trabalho dinâmico, ativo e que esteja planejado quanto a procedimentos e objetivos concretos.

Ainda constatamos que a prioridade da biblioteca escolar está sendo manter os livros nas estantes, sem manuseio dos alunos, o que nos leva a um passado longe em que a biblioteca servia como local exclusivo para se guardar as informações, como tesouros ou relíquias, visto a dificuldade de produção desse material, uma prática remota, em geral criticada, mas ainda existente nos dias de hoje. Estamos persuadidos, porém, de que sem facilitar o acesso dos alunos ao seu acervo, a biblioteca escolar dificilmente atingirá o seu principal objetivo de incentivo à leitura e de integração com os objetivos educacionais.

Por outro lado, verificamos, nesta pesquisa, que há professorado que compreende a importância da leitura e da biblioteca, ressaltando o interesse em integrar os conteúdos e as atividades em sala de aula com as da biblioteca. O que notamos em falta, então, é unir a essa compreensão e interesse uma prática concreta de integração, exigindo que a biblioteca atenda aos interesses dos leitores, pois, se se tornarem omissos, os professores estarão contribuindo para que a biblioteca continue sendo um local de livros tão somente, não um local de articulação de leituras, de conhecimento e de veiculação do saber.

Constatamos que os recursos físicos e materiais que a biblioteca dispõe possibilitam o início de um trabalho dinâmico, faltando recursos humanos que o viabilizem. No entanto, a falta de integração às novas tecnologias é visível, tendo em vista os poucos computadores e a pouca acessibilidade à internet na maioria das escolas pesquisadas. Mesmo assim, para os auxiliares de biblioteca cumprirem a função de mediadores do conhecimento existente (entendendo aqui o conhecimento como algo vivo, refutável, gerador de conflitos, propiciador de novos conhecimentos, e não como pacífico, pronto e acabado), precisariam de agir como mediadores integrados ao contexto em que se encontram inseridos. Só assim —possibilitando o acesso livre à informação existente e ao rico mundo literário, com suas variadas opções de leitura, e promovendo o contato agradável com os livros—, é que julgamos possível a formação de leitores, objetivo que enche de sentido à existência de bibliotecas escolares.

Ideal seria, enfim, para nós, que formássemos leitores como a personagem de Clarice Lispector em Felicidade Clandestina, aquela que insiste em querer tomar emprestado o livro As Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato, submetendo-se a todo tipo de humilhações para conseguir o seu objeto de leitura. Até que um dia a mãe da menina que tinha o livro põe fim a sua crueldade emprestando-lho, proporcionando assim a essa personagem as delícias da posse do livro até o prazer de poder lê-lo, assim dizendo: “criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade” (Lispector, 1994: 18).